Otávio Martins está em turnê com o espetáculo “Três Dias de Chuva”, dirigido por Jô Soares, ao lado dos amigos Carolina Ferraz e Fernando Pavão. O ator, diretor, produtor e dramaturgo, conversou conosco sobre a peça, seu amor pelo teatro e o papel fundamental da Rádio na formação da identidade cultural dos brasileiros. Confira!
DMJ: Otávio, você está viajando pelo país com “Três Dias de Chuva”. Conte-nos um pouco sobre o texto
Otávio: É um texto americano do Richard Greenberg que trata como nós julgamos nossos antepassados, sem se preocupar com as razões que os levaram a fazer aquilo que eles fazem. Ele conta a história em dois atos. No 1º ato, em 1995, os filhos descobrem um diário do pai e em 1960, o 2º ato, nós fazemos os próprios pais. Ele traça um paralelo muito engraçado, mas também dramático. A gente tem essa tendência a julgar, acho que às vezes a gente nem quer, mas acaba julgando. A peça fala justamente sobre isso e o texto tem uma linguagem muito realista, muito próxima do nosso cotidiano.
DMJ: Qual é o grande barato da peça?
Otávio: O grande barato é que você vê o 2º ato, depois você vê o 1º ato e não tem resposta. O público cria na cabeça dele o que aconteceu entre os anos 1960 e 1995. Ele sai com várias teorias e isso é bacana, né? Você deixar o público responsável por criar uma parte da história.
DMJ: A peça já foi bastante reproduzida em outros países. Vocês tiveram acesso a outras montagens durante o processo criativo do espetáculo?
Otávio:Não. Na verdade eu e a Carolina Ferraz estávamos procurando um texto pra montar e não queríamos um texto de casal. Nada contra, mas não era o que queríamos e descobrimos esse através de uma amiga. Nós estávamos sem expectativa pra fazer novela e quando descobrimos o texto, fomos chamados pra fazer a mesma novela rsrs. Mas esse texto é muito emocionante. Ele é interessante pra qualquer ator pela oportunidade de construir dois personagens diferentes e com tanta riqueza de detalhes.
DMJ: Além da direção, Jô Soares assina a tradução do texto. O que ele trouxe de novo para essa montagem?
Otávio: O Jô é um dos maiores artistas brasileiros. Ele dirige, atua e traduz maravilhosamente bem, além de ser muito claro naquilo que ele quer fazer. Ele tem uma maneira de ensaiar que é muito peculiar. Nós ficamos 5 semanas só lendo o texto. A gente lia aproximadamente 4 vezes por dia. E a cada vez que líamos, íamos tendo uma nova visão do que seria. Quando fomos ensaiar, além de já ter tudo decorado, a gente já sabia quase tudo que tinha que fazer.
DMJ: Essa intimidade com o texto, diminui um pouco as borboletas no estômago antes de entrar no palco?
Otávio: Não. Mesmo que você esteja em temporada, o público é diferente. Então te dá um nervosinho, um friozinho na barriga, porque você nunca sabe o que vai encontrar. Se for em turnê é pior ainda, já que cada cidade tem um tipo de recepção. Todas são boas, mas é diferente, você não sabe como vai funcionar. Teve cidade que a gente fez e as pessoas riram muito, sempre é uma surpresa.
DMJ: Mas trata-se de um drama. Correto?
Otávio: É uma comédia e é um drama em iguais proporções. Embora seja uma história dramática, ela é contada de uma forma leve, bem-humorada. É quase como uma comédia romântica. Conta a história dos pais, mas na hora de contar a história dos filhos, a postura deles é engraçada. Já na hora de contar a história dos pais, o autor manda ver na comédia romântica.
Mas sabe por quê? O autor foi muito inteligente! Na hora que a gente encena o ano de 1995, são utilizados os artifícios de dramaturgia da década de 90. Tem momentos que a gente para de conversar entre nós e passa a conversar com a plateia. Os personagens são mais cruéis, mais secos. Na década de 60, eles são mais românticos, encaram o amor de uma outra forma. O texto mostra o comportamento de um mesmo fato em épocas diferentes. E as pessoas saem muito encantadas com a década de 60. Eu acho que no fundo, elas querem acreditar que aquilo vai dar certo, sabe? Mesmo já sabendo exatamente como aquilo vai ser interpretado lá na frente.
DMJ: E isso, com certeza, abre uma reflexão…
Otávio: Exato! Porque às vezes a gente faz uma coisa tão legal, tão bacana e isso não é bem recebido. A gente nunca sabe como nossos atos serão recebidos, como eles vão estourar lá na frente, mesmo sendo feito com as melhores intenções.
DMJ: Como funciona a parceria entre a equipe?
Otávio: Viajamos com uma equipe de 10 pessoas e sempre ficamos nos mesmos hotéis. Fazemos todas as refeições juntos, nos divertimos juntos. Uma peça de teatro para ser confeccionada gera em torno de 90 empregos e para ela ser mantida, gera em torno de 10 empregos. São 10 famílias que vivem as custas do que é produzido aqui. As pessoas têm uma imagem do artista como glamoroso. Mas se eles forem ao restaurante, irão ver a Carolina sentada conversando, interagindo, se divertindo com a camareira. Somos todos parte de uma mesma equipe e todos são igualmente importantes. A luz, a música, tudo tem que estar em sintonia. E essa sintonia é estabelecida pelas pessoas que estão ali.
DMJ: Como se deu a escolha do elenco?
Otávio: A Carolina é minha amiga há mais de 20 anos e o Fernando há uns 12, 13 anos. Televisão você faz com quem está ali pra trabalhar com você, mas teatro você faz com amigo. A pior coisa do mundo é dividir coxia com alguém que você não se dá bem. Teatro é envolvimento diário, muitos ensaios, temporadas longas, viagens de turnê. Você tem que gostar e admirar as pessoas que atuam junto com você. E a convivência entre nós é maravilhosa justamente por isso.
DMJ: Além de uma oportunidade de apreciar a dramaturgia, com quais sentimentos espera que o público deixe o teatro após assistir a peça?
Otávio: Se uma pessoa sair do teatro e aquilo gerar uma mudança na vida dela, você já cumpriu a missão. Isso é transformar a vida de alguém através da arte e eu já tive vários exemplos nesse sentido. Essa transformação pela arte é muito poderosa.
DMJ: Cinema, Teatro ou TV?
Otávio: Teatro.
DMJ: Você é ator, diretor e dramaturgo. Já dirigiu o próprio texto?
Otávio: Já! Inclusive com um texto que está vindo para a Bahia no 2º semestre, chama-se “Caros Ouvintes”. Eu comecei a dirigir, na verdade, com um texto meu e eu tinha prometido que nunca mais ia fazer isso. Mas uns 3 anos depois, um texto meu ia ser montado e a pessoa que iria dirigir teve um problema. Então veio aquela história “Será que você não pode fazer? rsrs. E eu não queria, porque eu não paro de mudar. Se o texto está na mão de outra pessoa, ele é imutável, claro que são feitas adaptações, mas nada além disso. Já quando é comigo, eu vou modificando tudo. Então, os atores enlouquecem comigo! rsrs. Depois disso eu dirigi mais uns 5 textos meus.
DMJ: E como é o Otávio diretor?
Otávio: Na verdade quando eu vou dirigir, eu já adianto para os autores: “Olha, metade do seu texto eu vou cortar” rsrs. Porque poucos são os dramaturgos que passaram pela atuação. Não é de forma consciente, mas é muito comum o autor tratar o ator como uma pessoa incapaz de expor as ideias dele. Ele explica tudo no texto várias vezes. Então, tem muita coisa que pode ser cortada, porque o ator sabe como fazer, tem que confiar nele. E eu faço isso com qualquer autor. Dirigi um texto do Alan Ayckbourn, “Pessoas Absurdas”, que foi um grande sucesso em São Paulo. Ficou um ano e meio em cartaz e eu cortei o texto pela metade. Eram 130 páginas e eu deixei com 65 páginas sem mutilar a peça. O ator está ali, as ideias estão ali. Se o ator consegue transmitir a emoção, falar essa emoção é redundante, é chamar o público de idiota e isso é uma coisa que eu detesto.
DMJ: O que o levou a escrever novela?
Otávio: Foi o “Caros Ouvintes”. Antes disso eu não havia pensado ainda em escrever novela. Walcyr Carrasco teve a ideia de me chamar depois que assistiu “Caros Ouvintes”. Hoje eu sou colaborador dele em “Êta Mundo Bom”e autor da radionovela. Eu tive que estudar muito radionovela, para realizar esse trabalho.
DMJ: Você tem uma história super bacana com a rádio. Além de ter escrito “Caros Ouvintes”, você produziu um programa aos 14 anos. Você acredita que a Rádio teve um papel fundamental na formação cultural dos brasileiros?
Otávio: Com certeza! Rádio no Brasil tem uma importância muito grande. Eu tenho vontade de desenvolver um espetáculo falando sobre isso. A Rádio foi responsável pela unificação do que nós conhecemos como identidade cultural do brasileiro. Imagine o cara que mora no Acre e outro que mora no Rio Grande do Sul. O que eles têm em comum fora o RG, uma certidão da República Federativa do Brasil? No começo do século XX, eles não se falavam. Quando Getúlio Vargas pega a Rádio e a desenvolve para que possa ser um instrumento de unificação nacional, é um golpe de gênio. Ele conseguiu entender que a única forma de você unir tantos lugares diferentes seria pela cultura. A cultura de um país é muito mais do que a lei Rouanet, muito mais importante que uma discussão política temporária. Eu sou paulista, você é baiana, nós somos brasileiros. E por que somos brasileiros? Porque possuímos a mesma cultura e isso nos torna cidadãos. Isso independe de gênero, de raça, de qualquer outra coisa. O Getúlio percebeu isso e deu um grande incentivo a Rádio, eram muitas concessões ao longo do país. Claro, ele tinha também outros objetivos além desse, e muito bem alcançados, que era que todo mundo ouvisse a voz do presidente. Foi daí que veio o programa “A Voz do Brasil”. Mas com isso, passamos a ter a nossa identidade cultural, pois, os caras do Acre e do RS passaram a ouvir os mesmos programas, as mesmas radionovelas. Depois, essa função foi passada para a televisão e mais tarde para a internet, mas o Rádio ainda é muito importante. Você pode estar em qualquer lugar, pode não ter TV, não ter internet, mas você sempre vai ter um rádio e pelo menos em ondas curtas sabe o que está acontecendo. Ele foi e continua sendo um instrumento muito agregador.
DMJ: O teatro também é um agregador cultural…
Otávio: Sim, porque além de proporcionar a cultura, é um meio de entretenimento e informação do cidadão. A função de entretenimento foi passada pra TV como entretenimento de massas. Se você pega as primeiras novelas da televisão, todas elas eram novelas de rádio. E tudo isso veio do folhetim, ou seja, toda nossa fonte é literária.
DMJ: Como você avaliou a possibilidade do fim do Ministério da Cultura?
Otávio: Só o cinema nacional gerou no ano passado 19 bilhões e mais de 80 mil empregos diretos. Eu sou a favor de um órgão que administre esse caráter cultural, seja um ministério ou uma secretaria. Mas ele tem que ser independente e não ligado ao Ministério da Educação porque essa ligação remete ao período da ditadura militar, onde a educação e a cultura eram mantidas pelo mesmo poder, em virtude de um certo controle. Controle esse que eu considero autoritário e retrógrado.
DMJ: Considerando todas as dificuldades que existem na carreira de ator, alguma vez pensou em desistir?
Otávio: Claro! Sua paixão nunca vai ser forte o suficiente enquanto você não passar por um momento de negação. E é assim com qualquer coisa. Você nega seus pais, você nega a pessoa pela qual se apaixona. É importante negar porque essa negação te leva a reafirmar o que você realmente quer, é preciso negar para abraçar a causa. Viver de arte no Brasil é mais difícil quanto viver de qualquer outra profissão, é uma carreira que tem seus problemas e suas vantagens. Talvez, o trabalho no teatro seja uma receita quase Darwiniana, porque no final acaba restando apenas os mais fortes. Não os mais talentosos, mas os mais fortes. A gente toma tanta porrada e continua de pé que chega uma hora que a porrada passa a doer menos, os calos ajudam você a não sentir tanta dor. Mas antes de mais nada, o que nos move é a imensa paixão. Sem ela, você pode fazer o que você quiser, mas não vai durar nada. E como qualquer paixão, a paixão pelo teatro tem que se transformar em amor. Você vai se apaixonar por outras possibilidades, pode fazer qualquer outra coisa, mas sempre vai ficar com o teatro porque é o que você ama de verdade. É isso que sustenta um casamento, uma profissão, uma carreira. O amor.
Galeria:
DMJ: Tato, muito obrigada! Espero poder contar com a sua participação outras vezes na nossa Janela! Beijo de luz e sucesso!
Otávio: Eu que agradeço, Lu. Adorei nosso papo.
3 Comments
Duda Freitas
31 de maio de 2016 at 07:21Tive oportunidade de assistir Três dias de Chuva em São Paulo. Ele e os demais atores estão de Parabéns. E a direção do Jô…espetacular!
lucia Leal
1 de junho de 2016 at 22:45Gostei muito, pois pude conhecer melhor esse ator, diretor, produtor e dramaturgo. Observei a reflexão quando ele enfatiza a importância do Rádio na nossa identidade cultural.???
Dália Leal
13 de junho de 2016 at 11:08Imagina só a competência do Otávio Martins, aliada à direção do Jô Soares e ainda ao lado de atores da estirpe de Carolina Ferraz e Fernando Pavão, maravilha de espetáculo!
Reportando-nos ao texto de “Três Dias de Chuva” que retrata como julgamos nossos antepassados, sem ao menos pensarmos nas razões, situações que os levaram a tomar decisões e atitudes; vê-se perfeitamente como o ser humano julga mesmo, isso é um fato! esse assunto nos leva à reflexão.
No decorrer da matéria percebe-se a desenvoltura cultural do ator, diretor, produtor e dramaturgo que se chama Otávio Martins!
Boa sorte, sucesso sempre p ele e toda sua equipe!
Luciana Leal arrasou na matéria, as perguntas foram oportunas e amadurecidas, e a galeria de fotos está ótima, parabéns!