Nesta entrevista exclusiva, entramos no vasto universo do ator Jayme Periard, celebrando quatro décadas de uma carreira brilhante. Jayme, conhecido por suas atuações memoráveis em uma série de personagens icônicos, explora sua trajetória profissional, nos brinda com reflexões sobre o papel essencial do teatro na conscientização social e, é claro, discute como seu impactante trabalho na peça “A Quebra” tem tocado profundamente o público. Junte-se a nós nesta conversa enquanto desvendamos as memórias e visões de Jayme Periard.
Lu: Em “A Quebra”, você interpreta quatro personagens diferentes, cada um com suas próprias histórias e desafios. Como se preparou para essa atuação multifacetada e qual dos personagens mais o desafiou?
Jayme: São quatro personagens distintos inseridos nessa mesma história. Eu os escolhi de uma forma documental para que eu pudesse fazer esse trabalho em um gênero que nunca tinha feito, que é um monólogo. E isso surgiu de uma maneira muito natural, não foi imposição de absolutamente nada. Eu fiz essa preparação sozinho durante quase dois meses, não só a preparação como ator, mas também a minha preparação como diretor do espetáculo. Essa concepção toda surgiu de uma necessidade pessoal e artística de retratar essa história. Eles são muito distintos, obviamente, mas não há um único personagem que tenha tido um grau de dificuldade maior ou menor do que o outro. Quando a gente cria personagens, a dificuldade está em humanizá-los e fazer esse trabalho de interpretação no sentido de chegar até as pessoas. Então, acho que o desafio está em todos eles.
Lu: A peça lida com questões morais e éticas delicadas. Como você acredita que o teatro pode ajudar a sociedade a refletir sobre esses temas de maneira construtiva?
Jayme: A peça realmente lida com questões bem sensíveis e eu acredito que o teatro sempre ajuda nas reflexões da vida. Ainda que seja através de uma comédia ou apenas entretenimento, você pode, através da arte teatral, estar discutindo, conversando e dialogando sobre temas sensíveis. Eu acho que o teatro cumpre muito bem esse papel, pois ele tem na sua essência aquilo que é básico em nós, seres humanos, que é a necessidade de ouvir e contar histórias. Então, quando nos reunimos para esse momento, o teatro tem muita força.
Lu: A peça aborda os abusos sexuais cometidos por membros da Igreja Católica. Como você lida com a responsabilidade de trazer esse assunto à tona no palco?
Jayme: O tema dos abusos sexuais na Igreja Católica, infelizmente, ainda é um tema bastante atual. Continua acontecendo e não é apenas um problema da Igreja Católica, mas de todas as instituições, não só religiosas, mas a nossa escolha foi por esse olhar em relação à Igreja Católica. A maior responsabilidade é porque estamos falando de pessoas reais. Desde o primeiro momento, eu falei que o teatro tem que humanizar seus personagens, mas, nesse caso, a gente tinha que humanizar estatísticas. E uma das coisas que mais me mobilizou foi ver que as vítimas eram sempre tratadas como números. Então, queríamos trazer essas vítimas para o palco, saber quais são suas dores. Essa é a nossa maior responsabilidade: ser honestos, sinceros e verdadeiros com essas histórias.
Lu:“A Quebra” também chama a atenção para o silêncio que muitas vezes envolve esses crimes. Qual é a mensagem mais importante que você espera que o público leve após assistir à peça?
Jayme: Você tocou em um ponto muito importante, que é o silêncio que há no Brasil, o maior país mais católico do mundo. Mesmo com dezenas de países pelo mundo fazendo um trabalho sério sobre isso, aqui no Brasil, um silêncio incompreensível persiste. Eu acredito que o público sairá muito impactado, primeiro por não saber que essas situações ocorrem e depois pela gravidade e atualidade do problema. Portanto, espero que o público saia da peça de maneira diferente, verdadeiramente tocado.
Lu: Importante destacar que o espetáculo não é um manifesto contra a Igreja Católica, mas sim uma reflexão sobre essa realidade. Como espera que o público reaja a essa abordagem equilibrada e sensível?
Jayme: Sim, não é, em nenhum momento, um espetáculo contra a Igreja Católica, mas é óbvio que a gente fala da Igreja Católica no sentido do “acobertamento” que muitos bispos e cardeais fizeram e fazem em relação a esses abusos que acontecem no seio da igreja. A reação da plateia tem sido muito impressionante, principalmente a reação das pessoas católicas. Elas saem sensibilizadas, saem agradecidas, saem reverberando, divulgando. Isso inclui católicos fervorosos e sacerdotes, que foram assistir. Essa talvez seja a resposta do público mais impressionante e mais desejada, o que nos faz acreditar que estamos no caminho certo com o espetáculo.
Lu: A dramaturgia da peça é baseada em casos reais, o que a torna ainda mais impactante. Como você equilibrou a necessidade de representar esses eventos de forma autêntica e respeitosa?
Jayme: Exatamente, são pessoas reais. É essa dramaturgia que a Regiana Antonini criou de forma tão bacana, sensível e inteligente. Ela trouxe um texto muito além do que eu poderia sonhar, com uma qualidade teatral excepcional, né? A gente que faz teatro tem a responsabilidade de fazer um bom teatro. Então, acho que a nossa autenticidade e o nosso respeito estão antes de tudo por sermos profissionais de teatro, artistas, que, através da nossa arte, se propõem a fazer essa discussão pela primeira vez no teatro. Nunca foi feito nada assim.
Lu: Além de comemorar seus 40 anos de carreira, qual é o significado pessoal desta peça para você?
Jayme: Essa comemoração parece contraditória, comemorar com um espetáculo tão denso e impactante. Não foi uma escolha racional, isso se impôs durante um processo. Eu já estava com outro espetáculo em vista, um monólogo com texto alemão. E encontrei meu agente, meu amigo Marcos Montenegro casualmente, e no meio de nossa conversa, o Marcos falou: “Você tem que fazer um espetáculo sobre os ‘casos de pedofilia’ na Igreja Católica.” No primeiro momento, eu não me empolguei tanto, pois estava envolvido em outro projeto, algo muito diferente do que eu pretendia fazer. No entanto, alguns meses depois, em casa, à noite, lembrei dessa conversa e decidi pesquisar. E aí, não tive dúvidas de que queria falar sobre isso. Comecei a conceber o espetáculo naquela mesma noite. O processo de atuação foi desenvolvido nesse momento solitário, em uma sala sozinho, durante quase dois meses. Foi um trabalho orgânico, com a criação dos personagens e do espetáculo como um todo sendo quase imperceptível.
Lu: Como a experiência de fazer um monólogo pela primeira vez em sua carreira se compara a outros papéis que você desempenhou no teatro e na televisão?
Jayme: Essa experiência do monólogo foi muito natural. É engraçado, as pessoas pensam que ensaiei pouco. Mas na verdade, ensaiei esse monólogo durante 40 anos para poder realizá-lo. Na realidade, são quatro monólogos. Portanto, foi uma consequência de toda a minha trajetória. Não dá para comparar com outros papéis devido à sua natureza teatral, mas, na essência, toda a construção se baseia no meu estudo, nas minhas experiências e nos exemplos que tive. Fui privilegiado em trabalhar com grandes diretores e atores ao longo da minha carreira, o que enriqueceu essa experiência. Porém, o processo é muito diferente do trabalho na televisão.
Lu: Como você enxerga o papel do teatro na conscientização social e na promoção do diálogo?
Jayme: Eu acredito que o teatro sempre desempenha um papel muito importante e social. Independentemente do gênero, ele reúne pessoas para pensar, emocionar-se e rir juntas. Hoje, talvez, seja ainda mais importante, pois as pessoas estão se reunindo menos para conversar, compartilhar, se sensibilizar, e mais envolvidas na defesa de verdades absolutas ou em conflitos. O teatro permite esse encontro, e essa talvez seja a sua função mais primordial.
Lu: Olhando para trás em sua carreira de 40 anos, quais são os momentos mais memoráveis e significativos que você considera terem deixado uma marca profunda em sua jornada artística?
Jayme: Vários momentos da minha carreira foram incríveis. Tive o privilégio de vivenciar talvez as décadas mais criativas da televisão e do teatro no Brasil, nas décadas de 80 e 90. Foram períodos de grandes transformações, com a presença de grandes atores, poetas e músicos. Grupos de rock nos anos 80 e grupos de teatro, como o Asdrúbal, eram comuns, e tínhamos um encontro quase que diário com atores de diversos segmentos. Estávamos juntos, fazendo arte sem outra preocupação que não fosse contar nossas histórias. Então, acredito que esse início de carreira tenha sido o momento mais memorável. Claro, também tenho ótimas lembranças dos personagens que pude interpretar ao longo desse caminho.
Lu: Ao longo desses 40 anos, você coleciona personagens inesquecíveis no currículo, como o Tito de “A Gata Comeu”. Quais são as lembranças que guarda desses trabalhos que aconteceram lá no comecinho de sua trajetória na TV?
Jayme: Com certeza, ao longo da minha carreira, tive a oportunidade de interpretar personagens que carrego com enorme carinho, e alguns deles até sinto saudades. Cada um desses personagens desempenhou um papel fundamental em minha vida, não apenas no aspecto artístico, mas também no pessoal. Eles contribuíram para o meu crescimento e moldaram a pessoa que sou hoje. Tive o privilégio de dar vida a diversos personagens marcantes. Logo no início da minha carreira, fui incrivelmente abençoado. Lembro-me de “A Gata Comeu”, uma novela que foi um sucesso absurdo e que ainda é lembrada com carinho pelo público. É um fenômeno que, de fato, é difícil de compreender. Em seguida, participei de “Dona Beija”, interpretando um personagem maravilhoso em uma novela que se destacava das demais, exibida pela Rede Manchete. Logo depois, retornei à Rede Globo para atuar em “Roda de Fogo”, que se tornou uma das grandes novelas da minha carreira. Esses momentos iniciais foram de extrema importância e marcaram muito meu miha trajetória artística.
Lu: Em 1991, você protagonizou ‘O Portador’, o primeiro programa da TV Brasileira a abordar o HIV, em uma época em que o assunto era tabu. Como você vê o impacto desse papel na conscientização sobre o HIV/AIDS no Brasil e qual foi a importância desse projeto em sua carreira?
Jayme: O “O Portador” foi um trabalho muito desafiador. Foi o primeiro programa na TV brasileira a abordar o HIV/AIDS, em uma época em que o tema era tabu. Esse projeto foi muito importante para todos os envolvidos e enfrentou muitos obstáculos para ser realizado. O personagem que interpretei foi baseado em um dos piores torturadores da época da ditadura, e retratar sua brutalidade foi um desafio artístico significativo. Mesmo que não tenha recebido a repercussão merecida, foi um passo corajoso e diferente por parte do SBT. Sinto muito orgulho desse trabalho, pois retratar a face terrível desses momentos da história é essencial para que as pessoas sejam tocadas e não repitam tais atrocidades. Não podemos minimizar nem os efeitos, nem as causas da ditadura brutal que ocorreu no Brasil e em toda a América Latina.
Lu: Se pudesse se encontrar com o menino que foi no passado, o que diria a ele?
Jayme: Essa pergunta é linda! Eu diria a ele: “Olha, vale a pena, hein!” Siga suas intuições e sonhos, porque vale a pena.
Lu: Uma frase
Jayme: Uma frase de Jorge Luis Borges, um autor argentino que gosto muito, me foi apresentada por José Wilker, quando ele era diretor de uma escola de teatro que frequentei há mais de 40 anos. Engraçado lembrar disso agora. Ele adaptou uma peça, “Alice Através do Espelho”, que participei, e nela havia um personagem que, em certo momento do espetáculo, dizia : “Cometi o maior dos pecados. Eu não tenho sido feliz.” Essa frase me veio à mente agora, e foi emocionante recordá-la.
Lu: Um sonho
Jayme: Continuar por mais 40 anos fazendo o que mais amo, que é a arte de representar.
Lu: Um lugar
Jayme: Lumiar, Nova Friburgo, meu canto, meu refúgio.
Lu: Um livro
Jayme: São vários, mas para citar um, vou escolher “Atrás das Linhas Inimigas de Meu Amor” de Leonard Cohen. Gosto muito desse autor, e há um poema nesse livro sobre amizade que sempre me emociona.
Lu: Uma música que o faz sorrir
Jayme: A boa música, é claro. E, em particular, as músicas que fazem parte da minha história, que me acompanharam ao longo da vida. Nesse sentido, gostaria de mencionar o Clube da Esquina. O quanto ouvi todos eles, como Beto, Lô Borges e Milton, principalmente. O quanto isso me trouxe emoção e influenciou a minha arte, o meu ofício.
Lu: O que o deixa verdadeiramente emocionado?
Jayme: Muitas coisas, mas, no momento, o que mais me emociona é quando termino o espetáculo “A Quebra” e percebo que as pessoas foram profundamente tocadas pelo meu trabalho.
Lu: Jayme, querido! Gostaria de expressar minha mais profunda gratidão por compartilhar sua trajetória artística conosco nesta entrevista. Foi uma verdadeira honra conhecer mais sobre sua carreira e as mensagens sensíveis e equilibradas que você transmite ao público através de suas atuações. Agradeço sinceramente por sua generosidade e por contribuir significativamente para a reflexão e o diálogo por meio de sua arte. Parabéns pelos incríveis 40 anos de carreira.
Jayme: Lu, um beijo grande. Desejo a você muito sucesso em seus empreendimentos e projetos, e gostaria de agradecer profundamente por ter aberto este espaço para nossa conversa.
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