Raymundo Sodré

Raymundo Sodré

Ele é conhecido como o “homem da massa”. Não apenas em virtude da canção que explodiu em todo país, mas principalmente, por ser uma pessoa que canta os medos e anseios da massa, do povo. Lançou recentemente um álbum belíssimo com músicas inéditas e que dizem muito para ele e pra todos nós. Se você ainda não escutou “Girassóis de Van Gogh”, precisa ouvi-lo com urgência. E de preferência com os olhos fechados, sentindo cada palavra e cada arranjo. É com Raymundo Sodré que conversamos agora.

DMJ: Quando a música entrou na sua vida?

Raymundo: Eu nasci dentro da música. Mamãe me ensinou a tocar violão e essa foi a maior herança que ela deixou: A chula. E ela  também cantava. Não era cantora profissional, mas tinha uma voz bem bonita e foi professora de dança de salão.  A noite mamãe dançou do Candomblé de minha tia e no dia seguinte eu nasci. 

 DMJ: Qual é a importância da Chula na sua trajetória?

Raymundo: A chula está no meu sangue, sou um “chuleiro” completo! rsrs. Nasci dentro da Chula. Graças a mamãe e minha tia Isaura, que promovia muitas festas lá em Ipirá. A gente teve uma vida difícil, faltava algumas coisas. Mas nunca faltou música e alegria. A alegria está dentro de mim e vem da minha família.

DMJ: Quando começou o tocar profissionalmente?

Raymundo: Olha, eu sempre acompanhei todo movimento musical do país. Muita gente começou a fazer sucesso através dos festivais. Eu acompanhava as músicas dos festivais e isso reascendeu a  vontade de ser artista, mas não batalhei pra isso. Em 1972, fui  morar em São Paulo pra trabalhar empregado e paralelamente tentar a carreira artística. Lá, conheci uma pessoa que sempre  dizia “Você não pode ser mais um baiano, você tem que ser o baiano”. Eu voltei pra a Bahia com aquilo na cabeça. Em 1974, fui morar em Santo Amaro e reencontrei os meninos: Jorge Portugal, Roberto Mendes, Luciano Lima. E  me deu aquele estalo, o que mamãe me deixou, ninguém havia explorado ainda, a Chula. E foi aí que tudo começou de verdade, por causa da Chula.

DMJ: Qual a importância dos shows do ICBA na sua carreira?

Raymundo: Bem no início fomos nos apresentar na Oficina de Jazz do ICBA. Eu coloquei um esparadrapo no rosto porque estava me recuperando de uma paralisia facial. E não é que deu certo? O público era formado por intelectuais e alemães. Foi lá que meu trabalho ganhou força porque eram tempos de ditadura e lá me sentia protegido, era como se estivesse tocando em outro país e realmente me abri para as composições.

DMJ: Você é de Ipirá, veio novo pra Salvador, mas estava sempre em Santo Amaro. Como consegue retratar essa mistura de sertão com recôncavo na sua arte?

Raymundo: Mamãe nasceu em Mundo Novo e papai em Santo Amaro. Eu nasci em Ipirá e fui criado em Salvador, indo pra Santo Amaro nos finais de semana e passando férias em Ipirá, na roça. Então deu essa mistura boa! rsrs. Nosso primeiro espetáculo no ICBA chamava-se “Recôncavo Sertão”. De lá pra cá, continuei mantendo as minhas raízes.

DMJ: A  música “A Massa” é um fenômeno raro. Como seu deu o seu processo criativo?

Raymundo: Nasceu o refrão e eu tinha mil ideias. Na época, estava estudando Sebastian Bach e foi daí que me veio a inspiração para o arranjo. Eu queria falar alguma coisa que falasse de todas as massas. Na física, massa é energia x aceleração. É uma palavra que significa muita coisa. Massa de pão, massa povo, massa de mandioca… eu sabia que isso dava música!  O refrão eu fiz, “Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe, da massa…” mas precisava da letra completa. Então, dei a Jorge Portugal a música pronta e o refrão. Ele escreveu em cima. Ele é danado!! Quando me deu a letra, eu comecei a cantar e no meio da música, as lágrimas já estavam caindo. Lu, eu também sou chorão, viu! Não é só você, não! rsrs

DMJ: Esperava toda essa repercussão em torno da música?

Raymundo: Não. Eu sabia que era uma música boa e que ia trazer notoriedade, mas não esperava a explosão que foi. No Festival, nós já nos sentíamos vitoriosos e “A Massa” é até hoje muito mais lembrada do que a música que tirou o primeiro lugar.  

DMJ: Como começou a parceria com Jorge Portugal?

Raymundo: Começou lá em Santo Amaro. A gente se encontrava pra tocar na casa de papai ou na casa da irmã de Roberto Mendes. Daí veio a parceria e a amizade.

Difícil mesmo é cantar uma música que fala de dor e saber que ela continua tão verdadeira, tão real, mesmo depois de tanto tempo. O povo, a massa, continua com medos iguais: A violência, o terrorismo. Na época, a massa tinha medo da ditadura.

DMJ: Incomoda até hoje as pessoas pedirem tanto pra você cantar “A Massa?”

Raymundo: Não, de forma alguma. Incomoda só se eu estiver cantando outra música e no meio gritarem pedindo “A Massa”. Aí eu fico chateado porque parece que as outras músicas não são importantes. Fora isso, não incomoda. O difícil mesmo é cantar uma música que fala de dor e saber que ela continua tão verdadeira, tão real, mesmo depois de tanto tempo. “A Massa” é uma música que pegou de A a Z. E olha que muita gente canta a letra errada. Cantam “massa de negros iguais”, mas  o certo é “massa de medos iguais”. E faz muito mais sentido. O povo, a massa, continua com medos iguais: A violência, o terrorismo. Na época, a massa tinha medo da ditadura.

DMJ: Mas apesar de retratar a dor da massa, não deixa de ser uma música alegre…

Raymundo: É verdade! Nós temos a herança musical dos escravos, que apesar de toda dor e da difícil realidade que fazia parte das suas vidas, faziam músicas e passavam muita alegria através do canto.

DMJ: E se você quiser regrava-la? Como funciona isso? Você ganha os direitos autorais?

Raymundo: É o seguinte: 30% é da editora, 35% meu e 35% de Jorge Portugal. Se eu quiser regravar, tenho que ter uma carta de Jorge Portugal liberando a parte dele. Mas a parte da editora, não tem conversa, teria que pagar a porcentagem dela. Então, se eu quiser regravar “A Massa” hoje, tenho que pagar sim, porque não tenho mais força na editora sobre a canção, a editora nos representa. Mas ganho os direitos autorais, sim.

DMJ: Conte-nos um pouco sobre os “ Girassóis de Van Gogh”, seu novo álbum.

Raymundo: Foi ideia da minha esposa, minha saudosa Dalva. Ela estudava Pedagogia, foi fazer um trabalho sobre Van Gogh,  escolheu os girassóis e  me pediu uma música. No início até relutei, demorei pra começar. Depois lembrei das minhas viagens, eu visitei o museu de Van Gogh em Amsterdam, na Holanda. Esse disco foi como um retorno ao museu, sua arte e suas cores.

“ Os girassóis que Van Gogh pintou

Vou pedir pra Holanda mandar pro meu amor…”

As outras músicas, também fiz por inspiração dela. Algumas gravei e outras, não. “Estrela Dalva” fiz pra ela, falo do céu de Santo Amaro, onde nos conhecemos.

“Estrela Dalva nasceu, no céu de Santo Amaro…” Dalva me deu uma injeção de ânimo, de vida e eu comecei a compor muito.  No CD tem também a música pra Saphira, nossa filhinha. As crianças cantam pra ela, é lindo! A canção chama-se o “Beijo Da Saphira” e diz assim:

“ No meu Jardim pousou um beija-flor

Dizendo que beijou uma bela Saphira

Estrela Dalva, no céu alumiou

O brilho que brilhou

O brilho da Saphira”

Só quem viveu aquilo tudo pra saber. E não era só na música, era em todos os sentidos. Me dói hoje ver gente defendendo a ditadura. São uns babacas, uns idiotas! Não sabem o que nós sofremos!

DMJ: Você começou a viver de música em uma época de muita combatividade em relação à arte. Chegou a ser perseguido pelo regime?

Raymundo: Todos foram, mas eu até que dei sorte. Eu ia explicar todas as letras pra eles, tudo direitinho. Era censura pesada.  Antes de estrear um show, a gente fazia uma apresentação pra eles, exclusiva. As vezes cortavam todo o repertório. Só quem viveu aquilo tudo pra saber. E não era só na música, era em todos os sentidos. Me dói hoje ver gente defendendo a ditadura. São uns babacas, uns idiotas! Não sabem o que nós sofremos!

DMJ: Foi isso que o levou a deixar o país?

Raymundo: Também. Houve um desentendimento com o regime autoritário do carlismo e não me chamavam mais pra tocar, não fazia mais shows. Na ocasião, recebi um convite pra ir pra a França e fiquei lá por 10 anos. Foi um alívio porque lá eu não ia fazer um show em função de “A  Massa”. Mas eu tenho muito orgulho da música, ela marcou uma geração e até hoje é sucesso por onde passa.

DMJ: O que o trouxe de volta?

Raymundo: O que me trouxe de volta foi a falta de mim. Quando a gente chega lá, ganha páginas nos jornais e tal. Mas quando você fica lá, passa a ser imigrante. E imigrante lá, minha filha, não tem jeito. Eles tratam bem, mas o direito é do francês. Pra você ter uma ideia, das nossas músicas  que tocavam lá, a gente pegava apenas 1%. É assim. Em 2000, há 16 anos atrás,  voltei pra Salvador e recomecei do zero.

DMJ: Você é uma pessoa politizada e que nunca teve receio de expor suas opiniões acerca do assunto. Acredita ser essa uma das responsabilidades do artista?

Raymundo: É uma responsabilidade, é perigoso, até.  Por isso eu tenho tanta responsabilidade no que falo, no que canto. Quando eu falo, falo em defesa do povo.

DMJ: Você sente falta desse espírito crítico na nova geração de compositores?

Raymundo: Sim, muito. A questão é que hoje em dia, quando as pessoas pensam em fazer música, já pensam em ganhar dinheiro, esse é o mal. As pessoas não pensam em fazer uma música para agradar a si mesmo e os outros, já pensam em fazer sucesso.  

DMJ: Como enxerga hoje o  nosso atual cenário artístico?

Raymundo: Eu acho meio enfadonho, porque a maioria das pessoas só querem falar de amor, de paixão.  O sexo também foi muito vulgarizado, vulgarizaram uma coisa sagrada, tão sagrada que gera pessoas. É uma energia muito grande. Claro que existe trabalhos bons, mas infelizmente, muitas dessas pessoas, não têm a oportunidade de mostrar a sua arte, porque não participa desse jogo. Eu  não gosto de músicas assim, procuro coisas para atiçar a mente das pessoas e ainda tem muita coisa pra ser explorada. Aparece alguns “fenômenos” que eu realmente não consigo entender. E são pessoas que chegam aqui e levam 500 mil da Bahia, enquanto a gente ganha 10 mil e leva 8 meses para receber.

DMJ: Por que você defende a legalização da maconha?

Raymundo: Porque a maconha não é droga, é erva. É como erva cidreira, melissa, capim santo. Em Cruzeta, uma cidade pacata do Rio Grande do Norte, uma senhora cultivava a folha há anos sem saber. Ela cultivava a erva medicinal que é um santo remédio  pra dor de barriga, soluço, dor de cabeça, febre e muitas outras coisas. Ela conhecia como Liamba. Criaram uma imagem da maconha que não é a verdadeira. Por quê liberam o álcool? É o álcool que está matando, causando acidentes, destruindo famílias. Quando eu falo da legalização, não me refiro somente ao fumo, refiro-me  a indústria. As cordas do sec XV eram feitas com a maconha. Com ela você faz sapato, faz roupa. Tudo isso aprendi na Cannabis House, o museu da maconha. Se você tiver uma insônia, é melhor pra saúde tomar um chá de maconha ou um rivotril? É uma questão de lógica.

DMJ: Você adorava passar férias em Ipirá, na roça. Como é a sua relação com a natureza?

Raymundo: Ah, eu amo a natureza!  Adorava ir pra Ipirá, ficar na roça ouvindo o canto dos passarinhos, montando a cavalo. Ficar perto dos animais é uma maravilha. Até hoje tenho uma relação muito forte com a natureza. O ser humano precisa aprender a respeita-la antes que seja tarde. No meu disco novo tem uma música  que se chama “Rumo das Águas”.

“Vamos salvar os rios

Senão será um rio de lágrimas

Vamos salvar as águas

Que nos levam, irrigam, nos lavam”

DMJ: Um lugar

Raymundo: Eu poderia te dizer que é em Paris e aqui na Bahia. Mas hoje eu posso dizer que é a minha Bahia.

Galeria:

DMJ: Raymundo Sodré por Raymundo Sodré

Raymundo: Eu nasci artista e morrerei artista. A música está dentro de mim e eu não posso parar com ela. Sou um homem que canta para a massa.

DMJ: Raymundo, muito obrigada! Vamos seguir defendendo e apoiando massa e lutando por um país melhor. Sucesso e beijo de luz!  

Lu Leal

Formada em Comunicação Social, atuou na produção do Programa “A Bahia Que a Gente Gosta”, da Record Bahia, foi apresentadora da TV Salvador e hoje mergulha de cabeça no universo da cultura nordestina como produtora de Del Feliz, artista que leva as riquezas e diversidade do Nordeste para o mundo. Baiana, intensa, inquieta e sensível, Lu adora aqueles finais clichês que nos fazem sorrir. Valoriza mais o “ser” do que o “ter”. Deixa qualquer programa para ver o pôr do sol ou apreciar a lua. Não consegue viver sem cachorro e chocolate. Ama música e define a sua vida como uma constante trilha sonora. Ávida por novos desafios, está sempre pronta para mudar. Essa é Lu Leal, uma escorpiana que adora viagens, livros e teatro. Paixões essas, que rendem excelentes pautas. Siga @lulealnews

8 Comments

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    Acacio
    20 de junho de 2016 at 12:36 Reply

    Adorei tudo,
    entrevista, os casos, músicas.
    Excelente, amiga entrevistando e o amigo sendo entrevistado.
    Espetácular! Parabéns!

  2. Avatar
    Nilza Sacramento
    20 de junho de 2016 at 13:00 Reply

    Luciana, da sua janela entrevejo cultura, gastronomia, saúde, turismo, enfim uma diversidade de aspectos que pontuam o nosso cotidiano… Você está de parabéns, querida!

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    Thiago Bols
    20 de junho de 2016 at 13:01 Reply

    Toda nobreza e simplicidade do grande Raymundo Sodré numa emocionante entrevista! Vlew Luciana Leal e Da Minha Janela!

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    Neuza Santts
    20 de junho de 2016 at 15:43 Reply

    Quando eu lembro da massa da mandioca!!!inesquecivel, sou fã

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    Antonio Milton Almeida
    20 de junho de 2016 at 15:44 Reply

    Grande encontro linda raiz DA pura e lírica MPB Raimundo Raymundo Sodré

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    Dália Leal
    21 de junho de 2016 at 21:42 Reply

    Conhecendo mais o Raymundo Sodré, grande oportunidade que o daminhajanela.net nos possibilita.
    Percebe-se suas raízes, intimidade com a música desde a infância, sendo orientado pela mãe cantora e professora de dança. Excelente compositor, estudioso da música erudita, acrescentou tais conhecimentos aos seus arranjos inspirado em Sebastian Bach. Suas músicas são lindas, todavia é impossivel pensar em Raymundo Sodré sem lembrar da música: “Massa” que retrata a massa, o povo brasileiro.
    Luciana Leal amei a matéria, ao vídeo e como sempre você arrasa na galeria de fotos!
    Parabéns! !!♥★

  7. Avatar
    lucia Leal
    30 de junho de 2016 at 18:13 Reply

    Raymundo Sodré, nasceu na cidade de Ipirá e eu pensava que ele era de Santo Amaro da Purificação. Possui uma trajetória musical imensa, seu nome de imediato me leva a música “A massa”, foi um marco em sua carreira de sucesso. Adorei, Lu!

  8. Avatar
    Mari Santos
    13 de julho de 2016 at 10:42 Reply

    Adorei a matéria! Sou fã!

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