Cantor, compositor, ator, diretor artístico e criador de jingles. Baiano apaixonado pelo mar, eternizou através da obra, a magia dessa cidade em que todo mundo “É D’Oxum”. Confira nosso bate-papo com Gerônimo Santana, no charmoso Hotel Villa Bahia, no Largo do Cruzeiro de São Francisco, Pelourinho.
NJ: Gerônimo, quando a música entrou em sua vida?
Gerônimo: Eu nasci dentro da música. Meu avô não era músico profissional, mas era músico. Minha tia-avó era uma exímia acordeonista, hoje ela não toca mais.
NJ: Qual é a lembrança mais forte da sua infância?
Gerônimo: Eu nasci na Liberdade, na casa de minha avó, mas Bom Jesus dos Passos é um reduto familiar. É um lugar lindo que me traz muitas recordações.
NJ: Você disse que nasceu na Liberdade. A música “Eu sou Negão” vem dessa memória afetiva?
Gerônimo: Eu acredito que sim. Além da Ilha, minha infância e adolescência foram na Liberdade, em Santo Antônio, no mangue. Quando eu fiz a música, associei a Liberdade, por ser o Curuzu, o berço de origem do Ilê Ayê. Enquanto houver a cultura negra, a música popular brasileira irá perdurar. O Ilê foi um bloco que surgiu com uma certa resistência devido ao preconceito que pessoas afrodescendentes sofriam. O ano era 1986 e eu associei isso a uma história dentro da história.
Eu penso que um dia, a Bahia vai conseguir dar um exemplo de total miscigenação cultural, porque isso faz parte da nossa genética. O baiano é assim, nós tratamos bem quem vem de fora, somos receptivos. E isso, ninguém nos tira.
NJ: A música continua tão forte…
Gerônimo: Até hoje! essas músicas são emblemáticas porque é muito difícil conseguir romper o preconceito tanto de uma lado, quanto do outro. Sim, porque também há preconceito do lado negro. Eu sei que uma coisa não justifica a outra, mas existe e não podemos negar. Tanto é, que eu jamais poderia sair no Ilê Ayê, porque sou tinta fraca, sou mulato. E por ser mulato e ter algumas características de branco, eles pensam que eu não faria bem a composição para estar ali. É o pensamento deles e eu não me importo. Mas existem outros blocos Afros que possuem uma visão de integração maior entre negros, brancos e mulatos. O Cortejo Afro, por exemplo, é um bloco totalmente voltado para a cultura afro-brasileira, através de suas músicas, seus temas, suas roupas. Mas ele se integraliza com o povo estrangeiro, com músicos de lá que tocam o samba reggae, que vem pra cá e se juntam com nossos músicos. Outro exemplo disso é o Olodum. Eu penso que um dia, a Bahia vai conseguir dar um exemplo de total miscigenação cultural, porque isso faz parte da nossa genética. O baiano é assim, nós dominamos a arte da sedução, tratamos bem quem vem de fora, somos receptivos. E isso, ninguém nos tira.
Faltando mais ou menos uma hora para o sol nascer, eu olhei para a Baía de Todos os Santos e vi aquele espelho d’água, aquela calmaria perfumada e ao fundo, as luzes amarelas douradas. Então eu disse : nessa cidade todo mundo é d’Oxum.
NJ: Um dos seus maiores sucessos é a canção “É D’Oxum”. Como veio a inspiração para essa música?
Gerônimo: É D’Oxum é uma música minha e do meu parceiro que está no céu, Vevé Calazans. Ela foi composta em 1983, porque Alcione queria gravar músicas de compositores baianos, ela queria render uma homenagem à Bahia. Nós não tínhamos muita fama, então, no verão fomos para a Ilha de Itaparica, em Gameleira, para a casa do Major Calazans. Fiquei a noite toda tentando criar a música com Vevé, mas ela não saia de jeito nenhum. Chupamos todas as mangas que havia no quintal da casa e nada da inspiração chegar rsrs. Não existia tema, não existia nada. Lá pela madrugada, faltando mais ou menos uma hora para o sol nascer, eu olhei para a Baía de Todos os Santos e vi aquele espelho d’água, aquela calmaria perfumada e ao fundo, as luzes amarelas douradas. Então eu disse : “nessa cidade todo mundo é d’Oxum” e começamos a fazer juntos a canção. A partir daí foram apenas 15 min para ela ficar pronta. Quando Alcione ouviu, teria dito que não queria gravar, pois Clara Nunes havia falecido há pouco tempo e ela não se sentiria bem gravando uma música com o tema que Clara costumava cantar.
NJ: E como foi a trajetória da música a partir daí?
Gerônimo: A música não foi gravada por Alcione, mas ela caminhou bastante. Foi para o Rio de Janeiro e a fita K7 com a gravação foi parar em um balaio de músicas da Som Livre. Nessa época, a Rede Globo estava fazendo uma novela de Jorge Amado, chamada “Tenda dos Milagres”, que tinha como tema o racismo e a religião afrodescendente. Quando Dori Caymmi ouviu a música, mostrou ao pai e ele disse que aquela era uma música que ele gostaria de ter criado, mas que eu e Vevé tivemos a sorte de fazer. E disse que a música era mais bonita que a dele. imagine, Dorival Caymmi dizendo isso! Até hoje é difícil de acreditar. Ele era um homem simples, do bem. A famíla Caymmi toda é assim e foi essa música que nos aproximou. Me orgulho muito de tê-la criado junto com Vevé. E a partir dela, outras músicas apareceram.
NJ: Quem a gravou pela primeira vez?
Gerônimo: O grupo MPB4 que participou da trilha sonora da novela. Mas a música fez um sucesso embrionário e teve as características da própria Orixá, de Oxum. Aos poucos foi conquistando, virou sucesso e é assim até hoje. Uma canção com mais de 30 anos, que parece que foi feita ontem. E é uma música que não se canta o fundamento da Orixá, não chama a Orixá para a roda, apenas faz uma relação entre ela e as pessoas dessa cidade. Oxum é a deusa do bom humor, da sedução. Qualquer pessoa que se olhe no espelho e se ache linda, é de Oxum. Isso são simbologias, claro. O povo afrodescendente acredita que o Orixá é muito mais evoluído do que nós. É tão evoluído que pode ser o vento que nos toca a pele, pode ser a água que nos molha. Até na cadeira que você está sentada, pode existir aí um Orixá. Ele pode estar aonde ele quiser. Inclusive, acreditam que em cada árvore que existe no mundo, habita um Deus, porque essa árvore é capaz de transformar gás carbônico em oxigênio. Uma árvore produz vida para a vida.
NJ: A pena que você usa na cabeça, durante os shows, tem alguma relação com a religião?
Gerônimo: Tem, sim. Aquele pena é chamada ekodidè, na língua Iorubá. Eu não sei ao certo o significado da palavra, mas sei que aquela pena é a parte feminina de Oxalá. Ele se veste todo de branco e a única coisa que pode colocar na cabeça é a pena, que é a prova de sua submissão ao poder genitor feminino.
NJ: Inclusive existem algumas lendas em relação isso…
Gerônimo: Sim! A mais verdadeira pra mim é a de que Oxalá teria se apaixonado por Oxum e tornou-se a preferida dele, gerando inveja. Ela não menstruava e estava sempre pronta para o amor. Um dia fizeram um feitiço e colocaram no trono de Oxum. Quando ela se sentou, sentiu uma cólica terrível e se viu banhada em sangue, mas não queria que Oxalá a visse naquele estado e sumiu. Ele enlouqueceu de saudade e depois de um tempo, as terras dele foram ficando sem água, as plantas morriam, o povo começou a passar por problemas. Ele ficou depressivo, nenhuma mulher conseguia agradá-lo, ele só queria Oxum. Logo surgiu a informação de que ali perto havia uma mulher que passava paz de espírito através do seu canto. Vestiram ele todo de branco e o levaram para conhecer essa mulher, que usava uma máscara e nunca mostrava o rosto. Ao chegar lá, ele foi se transformando, sentindo uma felicidade plena e quando ela parou de cantar, curvou-se a ela, mesmo sendo rei. Quando ele se abaixou, ela pegou a pena e passou na vagina. Imediatamente a pena ficou vermelha. Quando ele a colocou de volta na cabeça, já sabia que Oxum era a mulher dos encantos..Por isso ele usa o Kadidè.
Hoje é complicado, muitas rádios vendidas, algumas até vendidas para transmissões religiosas. Poucas são as rádios que tocam a música popular brasileira e mesmo as que tocam, obedecem a muitos critérios, inclusive, certos preconceitos culturais.
NJ: O que você acha que falta no carnaval de Salvador?
Gerônimo: Poxa, essa é uma pergunta que eu nem sei ao certo como responder. O Carnaval de Salvador existe no mesmo lugar desde que foi criado. A população aumentou e o local ficou pequeno. Teve um momento em que o carnaval de Salvador foi vitrine para o Brasil, entre 88 e até meados da década de 90. As rádios começaram a divulgar os artistas locais e eles passaram a ter visibilidade em todo o país. Hoje é mais complicado, muitas rádios vendidas, algumas até vendidas para transmissões religiosas. Poucas são as rádios que tocam a música popular brasileira e mesmo as que tocam, obedecem a muitos critérios, inclusive, certos preconceitos culturais. Além disso, sofrem forte influência da música anglo-saxônica. O sol nasce e se põe entre o Rio de Janeiro e São Paulo e para o restante do Brasil ficam as sobras. O carnaval está cada vez mais decadente. Hoje em dia todos os trios elétricos são enormes, tomam muito espaço nas ruas, são verdadeiros apartamentos e só falta ter piscina para o artista ficar relaxando enquanto o povão fica lá embaixo se espremendo. Eu não sou nenhum cientista para mudar o carnaval baiano, mas ele realmente está em decadência. Uma coisa bacana é o Furdunço, que nada mais é do que a criatividade daqueles que não têm condições de colocar uma máquina poderosa. Olha, se organizar muito o carnaval não vai prestar, vamos ver o que acontece.
Axé” quer dizer “força”. Quando você se dirige a uma pessoa e diz “Axé”, você está esta dizendo “que a força esteja com você”
NJ: Como nasceu o Axé?
Gerônimo: O Axé foi uma fusão de vários ritmos, mas o nome, foi uma rotulação. A palavra “Axé” já começou de forma pejorativa em uma época em que quase ninguém conhecia o seu significado. Quem era roqueiro radical, chamava tudo que não era rock de Axé. Mas “Axé” quer dizer “força”. Quando você se dirige a uma pessoa e diz “Axé”, você está esta dizendo “que a força esteja com você”, a força da divindade.
NJ: Como você avalia as músicas de duplo sentido?
Gerônimo: Na verdade o duplo sentido sempre existiu “Ele tá de olho é na boutique dela…”. Porém na época da censura, o duplo sentido era mais romântico, fazia você parar e raciocinar o que o artista estava querendo dizer e hoje o duplo sentido é direto. Ele fala “pau”, fala “cú”, fala “buceta” de uma forma tão normal, como se estivesse tomando café com a mãe dele. A música de duplo sentido é o resultado de um comportamento de intransigência social. A liberdade de expressão faz com que essas pessoas pensem que isso é democracia, mas não é, isso é anarquia. O pagode, por exemplo, veio do Lundu. Trata-se de letras curtas e tem um objetivo. É um ritmo sedutor, toca e a pessoa se mexe. Sua mensagem é muito mais compreendida que uma mensagem poética. Hoje, muita gente tem preguiça de raciocinar e compreender a poesia. Nessa história toda, eu me preocupo mais com as crianças que ainda não sabem distinguir, repetem o que ouvem, dançam igual, de forma vulgar. E enquanto a gente viver em um país onde a maioria dos políticos estão envolvidos em escândalos de corrupção, esse problema vai continuar.
NJ: Falando nisso, qual é a sua opinião sobre a situação política do nosso país?
Gerônimo: Eu tive uma boa educação pública, na época da ditadura. E não ter isso em tempos de democracia, é vergonhoso! Eu gostaria muito de criar uma campanha “Não venda seu voto”. Acho que esse é o cerne da questão. As pessoas não podem ficar só pensando em si, o objetivo tem que ser cuidar do coletivo. Imagine o cara captar um milhão, pegar esse dinheiro para fazer boca de urna e ganhar 40 mil. Isso não faz sentido! Ele já se candidata pensando no que vai para o seu bolso durante o período, fora o salário. É preocupante, mas vamos ver o que vai acontecer daqui pra frente. Vamos ver se o gigante acordou.
NJ: Como avalia a sua trajetória artística?
Gerônimo: Ainda estou na cabeceira da pista esperando para decolar rsrs.
NJ: Por tudo que já viu e viveu até aqui, tem esperanças de um país melhor?
Gerônimo: Ah eu quero apostar que sim! Vivemos em um país onde não há terremoto, não há tsunami, só precisamos de representantes melhores. Seria ótimo que toda vez que aparecesse uma prova contra algum político safado, fossem apreendidos todos os seus bens e dinheiro. Eles deveriam ser colocados na feira pra sobreviver vendendo laranja. A família receberia uma ajuda de custo só pra não passar fome, tinha que tirar tudo deles. As pessoas precisam entender que o dinheiro do povo é uma coisa sagrada.
NJ: Como é a sua relação com o mar?
Gerônimo: Muito boa, principalmente quando ele está um pouco mais agitado. Houve um período da minha vida que eu não queria mais tocar e fiquei com meu barco trabalhando. Passava seis meses no mar e só colocava os pés na terra pra fazer a manutenção. Foi entre 1996 e 1998.
NJ: Como nasceu o projeto da Escadaria do Passo?
Gerônimo: Foi justamente quando voltei do mar. Fiquei muito preocupado porque as rádios não tocavam mais as músicas, o pagode estava começando a ganhar força com o “É o Tchan” e etc. Os artistas seguravam sua onda fazendo carnaval antecipado. Foi aí que comecei a perceber que estava ocorrendo um enfraquecimento da música baiana. Então, comecei a fazer esse show em frente a escadaria, onde tenho um pequeno escritório. Depois fomos para o Sesc e agora estamos na Praça Pedro Arcanjo.
NJ: O que costuma fazer para recarregar as energias?
Gerônimo: Vou pra Bom Jesus ver “mainha”, olhar meu barco, minha canoa. Gosto muito de lá.
NJ: Uma frase
Gerônimo: Brasil livre!
NJ: Um lugar
Gerônimo: Pelourinho
NJ: Um sonho
Gerônimo: Decolar da cabeceira da pista rsrs
NJ: Uma música que te faz sorrir
Gerônimo: Kirika na Buçanha rsrs
NJ: Gerônimo por Gerônimo
Gerônimo: Eu já sou sexagenário, mas a minha cabeça é de menino. Não tenho juízo nenhum e nem quero ter. Quero fazer meu trabalho, ajudar meus amigos e viver bem.
Galeria:
Nossos agradecimentos a Gerônimo, a Simone Carrara e ao Hotel Villa Bahia, pelo carinho que nos recebeu, proporcionando uma tarde maravilhosa na companhia do nosso querido poeta.
8 Comments
Roque
11 de outubro de 2016 at 12:17Muito bom. Fiz uma produção p geronimo pelo MPB PETROBRAS aqui em Alagoinhas. Pessoa do bem. Coloquei uma fonte de oxum p ele no camarim.
Dalia Leal
12 de outubro de 2016 at 01:56Gerônimo é excelente compositor, “É D’Oxum” é inesquecível!
Tive aqui a oportunidade de conhecer sobre kadidè que envolve Oxum e Oxalá…
É pura verdade quando falou em relação aos trios elétricos. Apoio plenamente sua colocação sobre o Furdunço, pois dá a oportunidade de brincar tranquilamente nas ruas; é uma delícia, curto e muito!
Luciana Leal, mais uma vez, perfeita entrevista! parabéns pela galeria de fotos, amei! ♥★
Camila Brito
20 de outubro de 2016 at 16:49Excelente cantor!!! Saudade da escadaria!!
Pedro Valdez
20 de outubro de 2016 at 16:50Gracias por ilustrar y compartir tanto talento y belleza de esas tierras!!
Luzia de Jesus
20 de outubro de 2016 at 16:51Nossa janela só homenageando pessoas de muito talento,muito bom isso.
Duda Freitas
21 de outubro de 2016 at 05:45A força que mora na água, não faz distinção de cor!!! Musica linda!! Entrevista linda!!!!
Nell Araujo
21 de outubro de 2016 at 05:46Gerônimo mais que um ícone da Bahia.
Acácio
21 de outubro de 2016 at 14:27Beleza de entrevista, bem intima.
Adoro as músicas de Gerônimo grande ícone da nossa música.