Anita Deak

Anita Deak

Ela é inquieta, questionadora e acredita que um livro é sempre um espelho da subjetividade do autor. Seu primeiro romance “Mate-me Quando Quiser” foi finalista do prêmio Sesc de Literatura em 2014 e teve os direitos vendidos para o cinema. Conversamos com Anita Deak sobre a carreira literária, seu processo de escrita, a antologia contra o autoritarismo e sobre “No Fundo do Oceano, os Animais Invisíveis”, seu novo romance.

NJ: Anita, como começou o seu interesse na literatura?

Anita: Minha mãe de criação, Dona Maria, me ensinou a ler aos cinco anos. Aos sete, ela simplesmente colocou na minha mão os livros da Zíbia Gasparetto, um após outro. Não era uma leitura para crianças, mas eu lia. Sobretudo porque ela gostava de ir a um centro espírita no Rio que tinha uma fila de espera de umas três horas. Então, não tendo o que fazer, me restavam aqueles livros com tramas muito parecidas. Quando não sabia uma palavra, eu perguntava a ela. Eu adorava. Quanto a escrever, Dona Maria também deu uma força. Depois do colégio, à tarde, estudávamos juntas. A única lição que ela não me deixava fazer era redação – ela fazia por mim. Até hoje não sei porquê. Só lembro que fiquei com vontade de escrever desde cedo.

NJ: Você está escrevendo o romance “No Fundo do Oceano, os Animais Invisíveis”. Sempre gostou desse universo? Já pode nos adiantar algo sobre o texto?

Anita: Sempre gostei do universo dos romances, de estabelecer um relacionamento longo com a história, com os personagens e com o texto em si. No fundo do oceano, os animais invisíveis é um romance de formação que acompanha a trajetória de Pedro Naves. Não quero dar spoiler, mas posso dizer que uma das partes do livro é contextualizada na Guerrilha do Araguaia, o movimento mais longo de resistência à ditadura militar brasileira (de 1972 a 1975, 69 guerrilheiros combateram cerca de 10 mil soldados das forças armadas no meio da floresta amazônica). Pesquisei muito o tema, mas fiz questão de só colocar no livro aquilo que servisse à ficção, de forma que, sim, é possível saber o que foi a guerrilha, mas, ao mesmo tempo, o leitor vai se deparar com questões humanas fundamentais, abordadas por meio do realismo mágico, quebras temporais e desfragmentação do narrador tradicional em alguns trechos.

NJ: Você escreve todos os dias? Como funciona o seu processo criativo?

Anita: Não escrevo todos os dias, mas estudo todos os dias pelo menos três horas (final de semana, às vezes eu varo umas oito horas estudando). Brinco que 70% dos meus pensamentos são voltados à literatura – ou estou lendo um grande escritor, ou colocando questões no meu diário de escrita ou anotando palavras no dicionário do próximo livro (onde anoto ideias também). Preciso desse processo constante de acumulação de ideias e deixo as informações assentarem. Então não estabeleço regras rígidas sobre escrever todos os dias ou uma quantidade determinada de páginas porque não gosto de colocar baia na criação. Para mim, ela pertence a um tempo dela, de amadurecimento interno, de sopeso e cocção. Quando sinto que é hora de fazer determinado capítulo, sento e escrevo. Levei três anos para terminar No fundo do oceano, os animais invisíveis. Tive, sim, fases em que escrevi todos os dias, mas, na maioria das vezes, deixei o texto descansar dois, três dias.

NJ: Você tem alguma mania relacionada ao seu processo de escrita?

Anita: Sim. Reescrevo e releio constantemente. No fundo, por exemplo, tem 146 páginas de Word, mas cortei 70 ao longo do processo. Só avanço reescrevendo e relendo porque vou ficando cada vez mais consciente tanto na história quanto da linguagem que estou construindo. É uma forma de entranhar o universo do livro. Para vocês terem uma ideia, eu tenho trechos e mais trechos decorados de tanto que reescrevi e reli. Diz o Graciliano Ramos que é preciso escrever como as lavadeiras de Alagoas torcem as roupas: até não sobrar nenhuma gota. A reescrita e a releitura mostram claramente, com o tempo, aquilo que sobra. Ah, tem outra coisa: eu precisei das 70 páginas para construir essas 146 finais. É preciso saber a hora de cortar também. Há capítulos que servem simplesmente como preparação interna para que o autor escreva algum capítulo subsequente. Eu chamo essas 70 páginas de “escadas”. É como se, depois de pintar uma parede, você descesse os degraus, tirasse as escadas e deixasse a casa pronta.

NJ: Seu primeiro romance “Mate-me Quando Quiser” foi finalista do prêmio Sesc de Literatura em 2014 e teve os direitos vendidos para o cinema. Como se deu esse processo? Esperava toda essa repercussão?

Anita: Eu esperava que ele fosse finalista do SESC porque o enredo, com cinco personagens, tem uma construção bem sólida. A linguagem, no entanto, é bem corrente. A singularidade fica por conta da história, não do estilo (algo que amadureci apenas agora, com No fundo do oceano, os animais invisíveis). Quanto ao cinema, quando terminei o livro, percebi que ele daria um filme interessante. Um amigo meu sugeriu a uma produtora e no ano seguinte ao lançamento fechamos o contrato. Mas está parado na Ancine, na burocracia. Veremos.

NJ: Como nasceu a história e por que ela se passa em Barcelona?

Anita: A história nasceu em Barcelona, quando eu andava pelas ruas do bairro gótico. A cidade teve muito impacto, sobretudo porque viajei sozinha e descobri muito sobre mim por causa disso. A observação, quando se está sozinha, é outra. Sentar numa mesa de bar sozinha também é uma experiência bem interessante. Eu estava muito aberta às possibilidades. Daí surgiu o enredo do Mate-me.

NJ: Lawrence Durrel escreveu que “um bom escritor não precisa de biografias. Toda a sua história está em suas obras”. Qual é a sua opinião sobre essa declaração? “No Fundo do Oceano, os Animais Invisíveis” aborda sua própria história de alguma forma? Com qual personagem mais se identifica?

Anita: Durrel sabe o que fala. O escritor se vai; a obra, quando é sólida, torna-se atemporal. Eu até leio biografias de vez em quando, mas encaro-as como ficção pois, para mim, um recorte subjetivo não dá conta de construir quem foi alguém. As pessoas se escondem delas mesmas, que dirá dos outros. As pessoas são mais que fatos, o que fizeram, por onde passaram. O que eu acho que as biografias trazem de interessante – sobretudo as de escritores – são as leituras que eles fizeram. Aí, sim, o leitor tem a oportunidade de refazer o percurso literário e entender influências. Isso, sim, me interessa demais. Agora, sobre meus livros, sim, eles têm sempre muito de mim – não fatos que aconteceram, mas as minhas inquietações internas, minhas perguntas. Um livro é sempre um espelho da subjetividade do autor.

NJ: Como avalia o atual mercado literário brasileiro?

Anita: É mambembe, mas precisamos continuar. Ano passado, deu no PISA (uma avaliação da Educação) que os melhores alunos brasileiros perdem em leitura para os piores alunos de países bem posicionados no ranking. Além dessa educação deficiente e de uma população média que tem dificuldade para interpretar textos, temos a internet, que acelerou a relação das pessoas com os conteúdos. Perdeu-se, em parte, a capacidade e a vontade de despender o tempo que um bom livro exige. Um bom livro não necessariamente vai te entregar só catarse e identificação – muitas vezes, ele vai falar de coisas que incomodam. A não ficção faz muito mais sucesso no Brasil do que a ficção. E, mesmo a ficção, se você olha a lista dos mais vendidos, constam mais autores estrangeiros do que brasileiros. Acho que só conseguiremos reverter isso com políticas para formar leitores de literatura contemporânea brasileira – cujos textos exigem mais referências e trânsito na língua.

NJ: Quando você pensa em sucesso na literatura, qual autor (a) lhe vem a cabeça e o que essa pessoa tem em sua obra que você mais admira?

Anita: Sucesso, para mim, não tem a ver com quantos leitores se têm ou quantos prêmios se ganhou. Sucesso é você fazer a melhor obra que você pode fazer, se dedicar, evoluir. Pra mim, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos são sucesso absoluto porque fizeram obras atemporais, densas. Ainda que não fossem tão conhecidos, para mim seriam sucesso puro. Há autores incríveis em língua portuguesa que são menos conhecidos do que deveriam ser aqui no Brasil (Vicente Franz Cecim e Almeida Faria, entre tantos outros), então a régua do sucesso para mim é sempre a potência literária. Guimarães, por exemplo, admiro demais porque ele conseguiu construir em Grande Sertão: Veredas um transregionalismo que abarcou temas universais. Nesse romance, há uma grande história, singularidade de linguagem, recuperação de palavras arcaicas. É uma ode às questões humanas, um romance irretocável. Já Graciliano tem uma simplicidade e uma economia de estilo muito difíceis de atingir. Com uma linguagem mais contida, mais seca, ele faz do cenário de Vidas Secas outro personagem. Esses dois livros, Grande Sertão Veredas e Vidas Secas releio muitas vezes para estudar.

NJ: Você declarou que a obra de José Saramago foi uma forte influência pra você. Em um dos seus trechos mais famosos, ele diz que “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do cotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.” Trazendo essa declaração para a atualidade, como você avalia esse momento crítico que estamos vivendo, a cegueira coletiva e as fake news?

Anita: Foi uma influência no Mate-me, agora não mais. Continuo admirando Saramago, mas hoje tenho ainda mais carinho por outros escritores portugueses como Maria Gabriela Llansol e Almeida Faria, que exploram uma dimensão mais metafísica e simbólica na linguagem. Quanto ao momento crítico, é uma excelente oportunidade para entendermos que ainda existe um pensamento conservador e violento no país (sempre existiu, aliás) e pensarmos no que podemos fazer – com nossas obras, com nossas vidas – para nos aproximarmos dessas pessoas de forma a convidá-las a um novo jeito de ver o mundo. Nesse processo, acho essencial que a gente reconheça que faz parte de todo ser humano, inclusive de nós mesmos, a luz e a sombra. Essa, aliás, pra mim é uma das mensagens mais relevantes de Grande Sertão: Veredas. Então não adianta apontar o dedo e erguer a muralha. Não adianta apontar para as ignorâncias alheias como se não tivéssemos nosso quinhão de ignorâncias também, como se a raiva e a violência não nos pertencessem. Acredito em pontes, em conexão. As fake news são resultado de um processo iniciado nos anos 1960, quando os conceitos de Sigmund Freud foram utilizados nas campanhas publicitárias. Há um documentário muito interessante sobre isso chamado O Século do Ego (The century of the self), disponível do YouTube. Ele descreve como as angústias internas humanas, tão bem delineadas por Freud, viraram instrumentos de manipulação para que o homem não agisse de forma consciente, mas tomasse atitudes (sobretudo de consumo) reativas. A fake new faz a mesma coisa: ela mobiliza as pessoas pelo medo, pela ansiedade, pelo ego. Faz com que reajam da forma mais reptiliana. Vivemos em uma sociedade que sequestra a potencialidade das pessoas, a capacidade intelectual a que elas poderiam chegar (e muitas nem percebem isso). Poucas coisas são tão importantes quanto a liberdade
de pensamento – isso só é possível quando você entende o quanto há de cerceamento emocional e intelectual em sua vida. Pensar é desconstruir e desatar. É se abrir a perguntas.

NJ: Como avalia a era digital e como utiliza as redes para divulgação da sua obra?

Anita: Tem o lado ruim de acelerar demais as pessoas e colocar, numa vitrine, objetos e pessoas como escravos de nossos desejos imediatos e projeções, e tem o lado bom de permitir a conexão com pessoas às quais não teríamos acesso fácil. Importante é usar as redes tomando cuidado para não ser usado. Eu, por exemplo, compartilho muito sobre criação literária e edição nos stories do Instagram (quem quiser, pode me seguir no @anitadeak0) e isso me rende leitores e trabalhos. Busco sempre passar conteúdo interessante, pois acredito em compartilhar o que sei, o que me move e me motiva. Quero que cada vez mais pessoas escrevam e leiam. Com o Facebook, não tenho paciência. Virou uma sucessão de artigos ruins sobre coisas variadas. Raramente dou as caras por lá.

NJ: Recentemente você organizou uma linda antologia contra o autoritarismo. Conte-nos um pouco a respeito.

Anita: Obrigada!  A Contos Brutos é uma coletânea que reúne contos de 33 autores, entre eles nomes como Vilma Arêas, Luiz Rufatto, Evandro Affonso Ferreira, Javier Contreras… A ideia foi do escritor Marcos Vinícius Almeida, e eu perguntei a ele se eu podia fazê-la acontecer. A partir daí, fui atrás dos autores. A antologia foi lançada no ano passado, na Flip, pela Editora Reformatório. Ela é um movimento no sentido de refletir sobre o autoritarismo, não só o que assola a política, aliás, mas o autoritarismo amplo que está presente na vida de todos nós. Deixei a proposta bem aberta para os autores, então há textos que falam de autoritarismo na política, no amor, no corpo…

NJ: Qual é o papel da religião em sua vida?

Anita: Muito importante. Sou budista e sempre busco conexão com a transcendência. Medito, reflito, me coloco contra a parede. Para mim, desenvolvimento espiritual ultrapassa a religião: é um comprometimento em ser uma pessoa melhor.

NJ: Uma frase

Anita: “A gente principa as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e por todos temperada”. Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa.

NJ: Um sonho:

Anita: Escrever uma obra-prima.

NJ: Um lugar

Anita: Gosto dos cômodos em que os meus gatos se deitam.

NJ: Um livro que gostaria de ter escrito

Anita: Grande Sertão: Veredas

NJ: Uma música que a faz sorrir

Anita: Romaria, do Renato Teixeira.

NJ: Uma saudade

Anita: Da infância por que, de lá, o tempo era largo.

NJ: Uma lembrança forte da infância

Anita: Eu nunca tinha visto filhotes de cachorro e minha avó sussurrou “vem cá ver uma coisa”. Ela destapou uma caixa pequena com seis filhotinhos dentro. Como eu só tinha visto, até então, cachorros grandes, eu presumi que minha avó tinha o poder de deixar os cachorros pequenininhos. Foi um momento bem mágico.

NJ: Uma meta

Anita: Escrever uma obra-prima. Pode ser que eu não consiga, mas vim pra dar a última respiração tentando.

NJ: Anita Deak por Anita Deak

Anita: Em busca. Cheia de perguntas.

NJ: Anita, muito obrigada por essa entrevista. É uma alegria tê-la na Nossa Janela.

Anita: O prazer foi todo meu!

Lu Leal

Formada em Comunicação Social, atuou na produção do Programa “A Bahia Que a Gente Gosta”, da Record Bahia, foi apresentadora da TV Salvador e hoje mergulha de cabeça no universo da cultura nordestina como produtora de Del Feliz, artista que leva as riquezas e diversidade do Nordeste para o mundo e de Jairo Barboza, voz influente na preservação e evolução da rica herança musical do Brasil. Baiana, intensa, inquieta e sensível, Lu adora aqueles finais clichês que nos fazem sorrir. Valoriza mais o “ser” do que o “ter”. Deixa qualquer programa para ver o pôr do sol ou apreciar a lua. Não consegue viver sem cachorro e chocolate. Ama música e define a sua vida como uma constante trilha sonora. Ávida por novos desafios, está sempre pronta para mudar. Essa é Lu Leal, uma escorpiana que adora viagens, livros e teatro. Paixões essas, que rendem excelentes pautas. Siga @lulealnews

5 Comments

  1. Avatar
    Fabiana LS Marques
    24 de janeiro de 2020 at 20:53 Reply

    Ja me interessei por “No Fundo do Oceano, os Animais Invisíveis”!!! Parabens pela entrevista.

  2. Avatar
    Dalia Leal
    25 de janeiro de 2020 at 15:41 Reply

    Excelente entrevista! amei!!!🌞🌜🌟👏👏👏💋❤

  3. Avatar
    Camila Marinho
    29 de janeiro de 2020 at 10:05 Reply

    Que escritora inteligente! Deu gosto de ler essa entrevista!

  4. Avatar
    Pedro Aguiar
    29 de janeiro de 2020 at 10:07 Reply

    Deu vontade de ler o livro, adorei a entrevista!

  5. Avatar
    IARA DOURADO
    4 de março de 2021 at 05:48 Reply

    Anita é humanamente ecológica. Ela constrói pontes onde se pode apalpar as possibilidades de por os pés na água, terra, fogo e ar…

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