Zebrinha

Zebrinha

Zebrinha é bailarino e diretor artístico, já tendo assinado a coreografia de dezenas de espetáculos de sucesso.  Além de formar bailarinos para brilhar nos palcos, prepara jovens para acreditar nos próprios sonhos e vencer na vida.

NJ: Zebrinha, como a arte entrou em sua vida? Sempre gostou de dançar?

Zebrinha: Tenho a impressão que sempre fui artista. Foi  na escola, durante o curso ginasial que comecei a realmente me envolver com arte. Tínhamos aulas de música, pintura, teatro e dança no Colégio Estadual Duque de Caxias, onde eu estudava. Em uma das experiências da aula de química, eu fiz o solista, representando  o núcleo da molécula da água e os professores perceberam minha aptidão para a dança. Daí recebi bolsas de estudo, ingressei no Grupo de Dança Contemporânea da Universidade Federal da Bahia e ganhei bolsas de estudos no exterior.

NJ: Como avalia sua trajetória artística até aqui?

Zebrinha: Logo após ter recebido uma bolsa de estudos completa no Alvin Ailey American Dance Center, NYC, enquanto treinava na Suécia, resolvi me fixar nos Países Baixos para aprofundar ainda mais meus conhecimentos na Dança Clássica e Moderna, disciplinas nas quais me diplomei no Stedelijk Conservatorium en Dansacademie te Arnhem, Hogeschool de kunsten in Arnhem, na Holanda. A partir dali, firmei  uma carreira sólida dançando em vários grupos da Europa. Quando decidi que queria ganhar dinheiro com a dança,  parti para Paris, onde trabalhei em diversos musicais, participei de shows de televisão, fiz várias campanhas publicitárias para a Nescafé  e fui durante quatro anos modelo exclusivo da Adidas e da Coq Sportif.  Voltei para o Brasil em 1987 e enfrentei todas a barreiras que normalmente são impostas a nós negros. Tive que brigar muito para  ocupar o espaço que era meu por direito e competência. Assumi a direção artística e coreografia do Balé Folclórico da Bahia  e coordenação e direção  de movimento do Bando de Teatro Olodum.

NJ: Qual é  a sua avaliação sobre o atual momento da dança contemporânea no Brasil e no exterior?

Zebrinha: O panorama da dança contemporânea no Brasil tem se mantido sem muita evolução. Tenho a impressão que por conta da falta de investimento nas artes brasileiras, a dança no Brasil é relegada a uma subcategoria da arte.  Ela começou a procurar o seu próprio rumo e estilo a partir do final  dos anos 70. A dança contemporânea no Brasil ainda está em formatação e nós precisamos aprender a usar definitivamente as influências indígenas e africanas pois ainda existe um grande preconceito, no âmbito nacional, quando se pensa na possibilidade de recorrer às influências africanas nas artes brasileiras.  Influência artístico-cultural negra no Brasil é coisa de preto.

NJ: Você morou em outros países, estudou nos Estados Unidos e se formou em Pedagogia em Dança e mestrado em Educação na Holanda. Por que decidiu voltar a viver em Salvador?

Zebrinha: Quando saí do Brasil estávamos em plena ditadura. Quando se instituiu a anistia, eu já estava pensando em parar de dançar, sair dos palcos. Estava querendo ser útil, queria fazer mais, queria dividir tudo que tinha aprendido. Havia duas possibilidades, a primeira seria ir para a África, já que eu trabalhava com grupos africanos em Paris nos estúdios de Paco Rabanne ou  voltar para o Brasil. Decidi experimentar o Brasil mas, chegando aqui , me desencantei com o panorama da dança, comprei uma fazendinha e fui trabalhar na roça.

NJ: Certa vez você afirmou: “Toda a minha formação vem de fora. Eu sou preto e grandão, aqui diziam que eu não podia fazer dança clássica. Lá fora eu descobri que eu poderia fazer tudo o que eu quisesse na minha vida”.  De lá pra cá essa realidade mudou de alguma forma ou o preconceito ainda é muito forte na dança?

Zebrinha: O preconceito continua enorme. É só observar as companhias de dança modernas e contemporâneas no Brasil, as companhias de ballet, as escolas de dança contemporâneas e clássicas, tem menos de 10% de pretos (quando tem). Dificilmente veremos uma dançarina preta nessas companhias. Não se tem um repertório contando nossa saga, nada mudou, não interessa a participação dos pretos em nenhum setor da sociedade brasileira.

NJ: Após formado, você colaborou com sua arte também no Continente Africano, potencializando a dança e dando aula a profissionais e amadores, resgatando pessoas, dignidades e esperanças em Ruanda, Benin, Nigéria, entre outros países na terra dos nossos ancestrais. Como foi essa experiência?

Zebrinha: Trabalhar em países da África foi tão especial que não consigo nem explicar. Em Ruanda, me senti um revolucionário,  participei por duas vezes do Festival Azimute, fiz a direção para um grupo de mulheres percussionistas,  a maioria delas com histórico de estupro por conta do genocídio (quanto mais estupros os guerreiros praticavam, mais forte eles ficavam, conforme a lenda). Muitas, eram soro positivas e naturalmente tinham ojeriza aos homens. Foi lindo, pois, no inicio era uma relação impossível, mas conseguimos construir um lindo trabalho baseado na confiança e no afeto. Hoje,  trata-se de um grupo consolidado que se apresenta no mundo todo. Quem leu o livro “Um Defeito de Cor”, conhece a saga de Kehinde. Eu fiz o caminho inverso, fiz todo o trajeto,  a coordenação artística do FESMAN, Festival de Arte Negra no Senegal e outras experiências que me valeram muito mais que o doutorado (que não fiz).

NJ: Como bailarino, professor e acima de tudo criador, você construiu uma assinatura própria, um jeito de fazer dança, ou melhor, de construir a sua dança.  Fale um pouco sobre esse processo.

Zebrinha: Eu sou simplesmente um professor de dança, sempre digo que eu não sou criativo, estou mais para um arquiteto do movimento que para coreógrafo. Eu crio pela observação, dificilmente eu chego numa sala de ensaio com um rascunho do que eu quero fazer. Respeito muito as vontades dos corpos em minha frente, me inspiro através das pessoas, do tempo e do espaço.  Depois de tudo que  vi e vivenciei, me permito criar sem muitas complicações  para mim ou para os artistas com quem estou trabalhando no momento. Acredito que nosso corpo tem uma memória ancestral, a provocação começa pelo despertar dessa memória.
NJ: Você foi o coreógrafo do musical “Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro”. O que mais o empolgou nesse  trabalho?
Zebrinha: Me empolgou bastante a chance de mostrar ao público brasileiro uma outra forma de contar nossa história, história de preto contada por pretos. E além de tudo, trazer para dentro de um musical todo vocabulário da dança contemporânea preta, celebrar a nossa ancestralidade na sala de estar.

NJ: O que significa , literalmente, Ballet Folclórico e como esse trabalho é desenvolvido?

Zebrinha: O Ballet Folclórico, antes de tudo,  é um centro de formação para jovens, em sua grande maioria (ou talvez até em sua totalidade) pretos.  Antes de formar o artista, meu intuito é sensibilizar esses jovens da importância e responsabilidade que eles têm com seu futuro, conscientizá-los que são donos da própria história. Na minha sala não existem carentes, existem jovens ávidos de conhecimento e vontade de mudar a si mesmo, a  comunidade e o mundo. Preparo esses jovens para enfrentar o mercado de trabalho.

NJ: Você disse que se tornou artista pra mudar o mundo. Quais são as lições que faz questão de passar para os seus alunos?

Zebrinha: Penso que a dança, assim como as artes em geral,  deveria fazer parte do currículo escolar e toda criança ou adolescente deveria ter acesso às artes. Porém,  essa não é a realidade no nosso país, existe um processo muito cruel na maioria das ações dentro das comunidades menos abastadas. Na maioria delas, são oferecidos cursos de dança e música (percussão) como saída. Eu acho um baita equívoco, a  formação em dança precisa de um grande investimento de tempo, disciplina e  dinheiro. Sem uma alimentação adequada é impossível se levar à frente e nem todo mundo nasce com disposição ou aptidão. Sempre que percebo uma falta de talento para a dança em alguns jovens, tento direcioná-los para um outro caminho e tenho tido muito sucesso nesse sentido. Tenho vários ex -alunos que são acadêmicos, mestres, doutores ou  estão espalhados em grandes companhias de dança pelo mundo.

A primeira lição é fazê-los entender que são donos do seu próprio destino e que, mesmo sem romantismo, somos capazes de chegar onde quisermos. Procuro mostrar para eles que a luta é desigual, que infelizmente temos que nos tornar heróis, que na maioria das vezes, temos que mostrar que somos muito mais capacitados para que o mundo nos abra uma porta. Cada vez que subimos um degrau, a força da gravidade humana tenta nos fazer descer, mas se perseguirmos nossos sonhos com disciplina, organização e perseverança, chegaremos lá.

NJ: Quais são os seus projetos profissionais mais imediatos?

Zebrinha:  Estou trabalhando em um documentário onde mostro como são tratados nossos artistas pretos. Aqui na Bahia não existe registro dos profissionais pretos que participaram do movimento da dança desde os anos 60. São muitos que cooperaram com a formatação da  dança na Bahia mas imagine que, a maioria dos artistas, nunca ouviu falar em Amazonas, Senzala, Conga, Luiz Bokanha, Mahália, Eurico e muitos outros. Até mesmo a grande dama da dança preta brasileira, Mercedes Batista, está sendo esquecida. Estou aguardando essa pandemia passar para retomar o espetáculo D. Ivone Lara, abrir um curso avançado de barra ao solo inteiramente gratuito no Ballet Folclórico da Bahia e  muitos outros projetos que às vezes não envolve a dança.

NJ: Como você lida com as críticas?

Zebrinha: As críticas para mim sempre serviram de mola propulsora, mas tem algumas às quais eu aplico o seguinte provérbio:  “os cães ladram e a caravana passa”.

NJ: Qual é o papel da religião em sua vida?

Zebrinha: Sou candomblecista. Digo que não sou iniciado, sou raspado, tenho minha religião como artífice para meu equilíbrio energético e espiritual, tenho o intuito e a obrigação de preservar essa tradição a todo custo, essa é a grande razão de ser um amante e adepto do culto aos Orixás, o candomblé  faz eu me reconhecer plenamente como afro-brasileiro e é uma grande fonte de inspiração para a minha arte.

NJ: Qual é a lembrança mais forte da sua infância no Curuzu?

Zebrinha: O Ilê Ayê!!!!!!!

NJ: Uma frase

Zebrinha: Podem tirar tudo de mim, nunca tirarão minha dignidade.

NJ: Um sonho

Zebrinha: O mesmo que Martin Luther King.

NJ: Um lugar

Zebrinha: Minha casa, sempre!

NJ: Uma música que o faz sorrir

Zebrinha: As músicas cantadas para Obá no xirê.

NJ: Uma meta

Zebrinha: Abrir portas, dar caminhos para quantos pretos seja possível.

NJ: Zebrinha de Ogum por Zebrinha de Ogum

Zebrinha: Eu sou somente um professor de dança.

NJ: Zebrinha, muito obrigada por participar da Nossa Janela!

 

Lu Leal

Formada em Comunicação Social, atuou na produção do Programa “A Bahia Que a Gente Gosta”, da Record Bahia, foi apresentadora da TV Salvador e hoje mergulha de cabeça no universo da cultura nordestina como produtora de Del Feliz, artista que leva as riquezas e diversidade do Nordeste para o mundo e de Jairo Barboza, voz influente na preservação e evolução da rica herança musical do Brasil. Baiana, intensa, inquieta e sensível, Lu adora aqueles finais clichês que nos fazem sorrir. Valoriza mais o “ser” do que o “ter”. Deixa qualquer programa para ver o pôr do sol ou apreciar a lua. Não consegue viver sem cachorro e chocolate. Ama música e define a sua vida como uma constante trilha sonora. Ávida por novos desafios, está sempre pronta para mudar. Essa é Lu Leal, uma escorpiana que adora viagens, livros e teatro. Paixões essas, que rendem excelentes pautas. Siga @lulealnews

1 Comment

  1. Avatar
    Lindete Souza
    27 de abril de 2020 at 14:37 Reply

    Maravilha Luciana! Sou jornalista também, Zebrinha é isso tudo q lhe respondeu e muito mais, trata-se de um amigo/irmão fiel, uma linda pessoa!!! E como sou dessas, adoro-o por além do q já disse, é chic e eu sou dessas! 😘🌷

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