Evaldo Macarrão

Evaldo Macarrão

Evaldo Macarrão iniciou a carreira de ator no CRIA enquanto ainda morava em Cosme de Farias, bairro periférico de Salvador. Ciente de sua responsabilidade e representatividade, hoje é visto brilhando no humorístico “Zorra”da Rede Globo. Conversamos com o ator e educador sobre a sua trajetória artística,  a atual política cultural do país e a  importância da educação e da fé para a transformação da realidade dos jovens. 

NJ: Macarrão,  qual foi o seu primeiro contato com o teatro? Como tudo começou?

Macarrão: Meu primeiro contato foi em uma oficina que fui fazer no Solar Boa Vista, através de um convite da escola onde eu estudava, o João Pedro dos Santos, na Av. Bonocô. Fui fazer essa oficina, simpatizei, mas achava que não ia dar certo. Lembro que a diretora, Ana Cecília, falou pra mim no final do processo que eu iria ser ator, mas nessa época eu tinha 13 anos e nem sabia de fato o que era o teatro. Voltei pra Cosme de Farias,  comunidade periférica de Salvador onde nasci e me criei e um colega convidou pra fazer uma oficina em um grupo de teatro comunitário dirigida por Adenilto, apelidado de Sassá, que já fazia parte do CRIA, uma ONG  que fica no Pelourinho há 25 anos e tem como principal objetivo formar cidadãos multiplicadores culturais através da arte e educação. Comecei a participar desse grupo comunitário e fui gostando. Sassá percebeu a minha disponibilidade, o meu interesse e me indicou para fazer teste para o CRIA. Foi aí que comecei a ter um contato mais profissional e rígido com o teatro. Sou muito grato a minha comunidade porque foi lá que tive o indicativo de conhecer o CRIA e a partir dali crescer e amadurecer.

NJ: Qual é a importância do CRIA ( Centro de Referência Integral de Adolescentes) na sua trajetória?

Macarrão: O CRIA foi minha escola pedagógica e artística. Acho que a maioria das coisas que aprendi pra me fazer cidadão, pra me fazer esse ser mais inquieto, pensador e mobilizador foi com o CRIA. Entender a História do país, entender sobre política, sobre religiosidade, o resgate da minha cultura, o resgate da minha etnia, tudo vem com o CRIA. Então, o grupo tem total importância na minha trajetória como artista, como educador e principalmente como cidadão, como ser humano. Só pude me enxergar como gente através do espelho do CRIA. Foi ele que abriu questionamentos para o que eu queria ser. O CRIA me fez acreditar na possibilidade de ser um artista respeitado, disciplinado, responsável. O CRIA me fez ser gente diferente, especial. A escola, a comunidade e a minha casa  não tinham me dado esse embasamento, infelizmente. Foi o CRIA que deu e possibilitou que me tornasse homem preto, militante. Eu sou muito feliz por ter o CRIA na minha vida. 

NJ: Você é graduado em Pedagogia pela UCSAL. De que forma os conhecimentos adquiridos na graduação contribuem na sua carreira de ator? 

Macarrão: O maior conhecimento adquirido na minha graduação foi o conhecimento da educação progressista, a educação construtivista que não tem nada a ver com tradicionalismo e a ideia conservadora de que  educação é só  para ensinar. A pedagogia me deu um lugar de suporte que eu já tinha no CRIA, essa ideia de ensinar e aprender com o outro, da troca e da pesquisa intensa. Acho que isso foi muito bacana na minha formação porque eu pude naturalmente fazer o link  com a minha carreira de ator, não me estabelecer em um lugar só,  aprender outras ferramentas para utilizar e conhecer novas fontes. Até durante a atuação não sou apenas ator, sou também esse mobilizador, multiplicador de conhecimentos. Sempre troco conhecimento e energia com a plateia. 

NJ: Como é que você está vendo essa crise toda na cultura?

Macarrão: Um total retrocesso. Só não dá pra perder a esperança porque sou artista e  sou educador que pensa no amanhã, pensa em um mundo melhor.  Mas a crise que a gente vem vivendo na cultura nos coloca em um lugar a margem e nos faz retroceder. Infelizmente está claro que essa crise vem do cenário político atual. É um momento bastante delicado. Temos uma política que não corresponde aos ideais de avanço principalmente em relação a população de baixa renda.  É nítido o esforço para não favorecer a informação aos negros e pobres. O atual quadro político me faz entender que é contra o meu lugar de conforto, contra o lugar que eu devo e quero viver como cidadão.  Uma política que comunga com o racismo, a homofobia, o machismo. O quadro político atual é totalmente triste pra mim e para os meus que tentam transformar seus sonhos  em realidade. Falo como homem preto  e periférico. Só quem é preto e periférico sabe o que é viver em uma sociedade tão racista e desigual que chega a ser desumana. A parte boa é que estamos na luta, para o enfrentamento e combate. A arte faz aflorar o amor. E assim resistiremos. 

NJ: Algumas pessoas defendem que o artista não deve posicionar-se em relação à política. O que pensa em relação a isso?

Macarrão: Eu discordo dessa ideia de que o artista não deve posicionar-se em relação a política porque o artista é um ser político. Não se faz arte ou educação sem política. Eu só vim saber sobre política através do teatro, da arte. O artista se posiciona artisticamente, no palco, no cinema, na televisão, na vida, independente do que ele esteja falando. O corpo artístico é um corpo político em movimento. 

NJ: Quais são as lições que você mais tem aprendido ultimamente e o que gostaria de aprender mais?

Macarrão: Das lições da vida, tenho aprendido a escutar mais, a observar mais. Profissionalmente eu tenho aprendido muito a fazer televisão e estou me disponibilizando a aprender cada vez mais, já que a linguagem é bem diferente do teatro. Elas dialogam, mas é uma outra história. Quero aprender cada vez mais sobre fazer TV, suas técnicas e emoções. Sobre a vida, quero aprender mais a escutar e a valorizar o silêncio, pois ele faz com que a gente se conecte com aquilo que a gente não está vendo. Já que a gente falou de política, eu acho que essa também é uma coisa que eu preciso aprender mais. Falar de política faz com que a gente aprenda mais sobre o mundo e sobre sua construção. Eu não aprendi, por exemplo, que essa terra já tinha dono, só vim aprender isso no teatro. Preciso aprender mais sobre a formação do povo brasileiro. 

NJ: Considera-se uma pessoa religiosa? O que é a fé pra você?

Macarrão: Sim, eu sou candomblecista, filho de Oxaguian, Oxalá, Orixá jovem.  A fé pra mim  é aquilo que eu acredito, que eu tenho como meta. E o teatro também me deu esse lugar de fé. Eu sou de uma família muito mais católica do que assumida no candomblé e  hoje entendo que isso se deve muito a intolerância religiosa. A educação nos dá suporte de embasamento e empoderamento pra que a gente possa ser desbravador do que a gente quer e acredita. Por falta de conhecimento, minha família não quis bancar uma religião que sempre foi alvo de preconceito. Eu cresci nessa família mas tenho a referência de meu pai que sempre se postou muito fervoroso, de acender vela pra santo e fazer a ligação do sincretismo religioso de saudar  São Jorge, que é Oxóssi no Candomblé. Essa referência foi me dando norte pra me entender naturalmente um ser religioso. E a arte me dá esse entendimento do que eu posso e quero acreditar. Então a fé pra mim é aquilo que eu acredito e eu acredito no poder da natureza, naquilo que a gente não vê e sente,  no  que está dentro da gente. E é preciso acreditar para sentir e ter, para manisfestar o que se chama de fé. A fé pra mim é aquilo que eu concentro, que eu tenho como foco e crença. É Oxaguian que está dentro de mim e me faz caminhar. É o mar, a árvore, o vento. É acreditar que o vento existe, que a natureza existe, que traz coisas boas e leva as coisas ruins. Mas que também pode levar coisas ruins pra quem merece coisas ruins. Então, acredito nisso, portanto tenho fé. E é essa fé que se manifesta em mim que me faz acreditar no amor e acreditar que vou crescer na vida, que vou vencer e chegar onde eu quero chegar, que vou ter um país menos racista, menos desumano. Que vou viver com tranquilidade, que vou ter direito de ir e vir. É isso, a fé é aquilo que eu acredito.

NJ: Você é nascido e criado em Cosme de Farias, bairro periférico de Salvador. Qual é a lembrança mais forte da sua infância?

Tenho três lembranças bem forte de Cosme de Farias. A primeira é um grupo de capoeira chamado “Nação Capoeira”. E é muito bom falar disso porque logo que entrei no grupo e logo tive a ideia de criar um grupo de capoeira para dar aulas aos meninos que não faziam parte dele. É muito bacana voltar a esse tempo porque acho que ali já existia o educador em mim e eu não sabia. o “CRIA” foi um divisor de águas e potencializador, atiçador desse  educador. Esse grupo foi o condutor para que eu descobrisse o que já era e não sabia. A segunda lembrança forte são os grupinhos de amizade, de brincadeiras, a gente até criou banda. E a terceira é a minha ligação com o Candomblé. Uma lembrança muito forte que tenho de Cosme de Farias é a lembrança de um terreiro de Candomblé que era próximo a minha casa e quando tocava Candomblé no mês de agosto, porque era um terreiro que tinha como regente o Obaluaê, o senhor da saúde e da doença, o senhor da cura. E quando tocava eu ficava muito atiçado, inquieto, querendo estar lá. Se por um lado  sentia muito medo do mistério e do que eu ouvia dizer da religião, por outro lado queria  estar lá dentro. Então, essa lembrança da minha ancestralidade também é muito forte. Sem dúvidas essas são as lembranças mais fortes de Cosme de Farias: o grupo de capoeira, o grupo comunitário de colegas e o terreiro de candomblé que me chamava para a conexão com minhas raízes. 

NJ: De onde vem o  apelido “Macarrão”?

Macarrão: Macarrão vem do CRIA. Eu não devo nada ao CRIA e nem o CRIA me deve nada, não existe dívidas. Mas eu sou e sempre serei muito grato ao grupo. Existe gratidão e eterna saudação a minha grande escola. Eu hoje estou como um dos educadores do CRIA mesmo estando aqui no Rio de Janeiro. Sempre que vou a Salvador eu visito os grupos, participo, me reencontro com a  grande mestra e professora que me deu e até hoje me dá régua e compasso, a mulher preta que me disse que era possível chegar onde eu quisesse chegar, que é Carla Lopes, minha grande referência. E lá no CRIA fui batizado como Macarrão. Eu tinha que estar lá todo dia às 7:30 para as atividades corporais e nesse dia quem estava fazendo o aquecimento foi o professor de canto e  preparador vocal, o saudoso Sr. Djalma Gomes, o “Sr Dja”, porque a coreógrafa ainda não tinha chegado. E eu achava muito cansativo acordar cedo pra ir pra CRIA fazer dança porque eu fazia capoeira de noite e de tarde ia pra escola, achava que o ator não precisava disso. Ele foi fazendo esse aquecimento e eu lá jogado na roda. Ele chamou atenção a primeira vez, a segunda e na terceira ele disse “poxa, todo mundo fazendo os exercícios e você aí mole no meio da roda parecendo um macarrão”. Todo mundo riu e eu achei sem graça porque o macarrão é branco, amarelo e eu sou preto. Achei que não tinha nada a ver a comparação. Ele insistiu na brincadeira e quando o grupo percebeu o meu incômodo, o apelido acabou pegando. Eu resisti muito, achava o apelido sem graça. Mas não teve jeito, aceitei como nome artístico e  hoje sou  Evaldo Macarrão (risos).

NJ: Como avalia a sua trajetória até aqui?

Macarrão: Minha trajetória se resume a esse trecho da música do Ilê Ayê:  “o meu mar não foi de rosas mas abri muitos caminhos”. O tempo foi muito generoso comigo e é muito meu amigo. Eu não tive maturidade pra entender o tempo no tempo que eu tinha que entender, mas hoje eu entendo. É muito sofrido ser artista negro, nordestino e periférico. É muito difícil se fazer artista em uma cidade que tem a maior população negra do país, que tem tudo pra dar certo mas dá errado porque o Estado comunga com um país que é racista, preconceituoso e intolerante. Minha trajetória se resume em dificuldades, sem muitas rosas mas com bons caminhos abertos. Com toda dificuldade resisti e tive Deus em primeiro lugar, que me reconectou com minhas raízes, com minha fé e o Orixá se fez presente em mim. Tive bons amigos ao meu lado e o CRIA que foi a grande escola que me conduziu.  

NJ: Quais são as lembranças que guarda do filme “Capitães de Areia”  e do Pirulito?

Macarrão: Aiii (risos). Guardo uma lembrança muito doce. Eu era muito menino, tinha 15, 16 anos. Estava começando a fazer teatro e ainda não tinha  entendimento sobre cinema, nunca nem havia ido ao cinema. Tenho essa lembrança do meu encontro com a linguagem cinematográfica, tudo era muito novo e ao mesmo tempo muito deslumbrante. Além disso, também tive uma conexão com a linguagem literária. A diretora Cecília Amado sinalizou que era importante a gente ler o livro para entender a história e eu li umas três vezes (risos). Capitães me afirmou como ator e guardo a lembrança doce do erê que estava se fazendo gente também profissionalmente. Já a lembrança que tenho do personagem  Pirulito é de muito carinho. Sempre que lembro dele lembro da minha conexão com a fé, com o meu lugar sagrado pois foi nesse período que estava me entendendo candomblecista. Uma das cenas que mais me emociona é a cena do carrossel e a trilha sonora de “Contato Imediato”. Aquilo pra mim é de uma doçura, de um afago, de um acolhimento para que a  gente possa ter esperança da criança que vai surgir e vai transformar o mundo de uma forma mais doce e mais humana. É lindo! 

NJ: Como foi a experiência de participar do espetáculo da Paixão de Cristo?

Macarrão: A experiência foi de talvez me fazer pertencente ao cenário baiano, de entrar nesse lugar da categoria. Porque fui para um elenco de atores já consagrados no teatro baiano como Carlos Betão, Jackson Costa, Agnaldo Lopes, Jussara Mathias e muitos outros que formam a nata do teatro baiano. Fui conhecendo e aprendendo a importância deles para o cenário baiano. A oportunidade foi de muito aprendizado com esse elenco grande e rico. O que eu fazia na Paixão de Cristo não era um papel de destaque mas ainda assim eu me destacava porque tinha uma cena que eu levava a cabeça de joão Batista e as pessoas viam o meu olhar, a interpretação que colocava naquilo. Ali pude pegar uma grande referência pra me espelhar como ator e como professor, principalmente com Carlos Betão que pra mim é um dos grandes atores do país. 

NJ:  Você está no ar no programa “ Zorra” e também já fez participação em “A Grande Família”. Gosta de trabalhar com humor?

Macarrão: Adoro trabalhar com humor, adoro!! Meu primeiro espetáculo de teatro era totalmente dramático, falava sobre violência sexual e violência doméstica. Mas tinha uma coisa de graça que eu relaciono ao “Zorra”, que é fato de você rir do opressor. Eu gosto de trabalhar com humor porque é muito  natural pra mim, gosto de ser feliz, sou uma pessoa alegre, que gosta da felicidade. Quando olho meu processo histórico percebo que ser preto é ser lindo, é ser massa, é ser luz. Eu adoro ser negro e se eu puder escolher em outras vidas quando for reencarnar eu quero ser preto sempre. Mas quando a gente pensa historicamente do que foi esse corpo preto faz com que a gente sofra de tristeza. Minha mãe foi baiana de acarajé, fazia faxina, acordava cedo pra vender mingau. Eu tenho muito orgulho de ser filho dessa mulher, de sua resistência, luta e garra. Mas quando eu paro pra analisar a história dela, vejo que não foi tão feliz, não teve uma vida tranquila e isso me toca muito. Por isso o que me garante viver com esperança é a felicidade, a alegria da possibilidade de mudança. E o humor nos coloca nesse lugar da graça, dos sorrisos. Pra fazer graça é preciso ser leve, é preciso sorrir. Meu primeiro trabalho na TV Globo foi uma participação em “A Grande Família” e fiquei encantado por estar ao lado de uma pessoa que eu amo o trabalho que é o “Pedro Cardoso”, que fazia o Agostinho. Eu fazia o Pajé mais jovem (personagem do Luis Miranda).  Mas apesar de me encontrar muito bem no humor, não me considero humorista. Eu gosto muito de atuar em qualquer que seja a categoria.

NJ: “O Zorra” está em um lugar de protesto contra essa realidade desigual. Como você avalia o papel social e político do programa? Acredita que o humor pode ser revolucionário?

Macarrão: Eu avalio de forma muito inteligente, o programa é muito inteligente, coloca em pauta a política desonesta. Eu acho importante falar do meu encontro com o ” Zorra” porque foi muito forte pra mim que venho desse lugar de protesto, de militância. Eu considero o ” Zorra” um programa progressista, pedagógico, que está ali pra provocar, mobilizar e talvez até colocar ordem  no que deveria ser organizado em outros setores. É um programa necessário para o momento que estamos vivendo pra combater a desigualdade social. E sim, acredito que humor tem seu lugar revolucionário. Ele toca em coisas que talvez o drama não tocasse com tanta sensibilidade e é importante pra mim e pra todas as pessoas que vieram de onde eu vim se sentirem representadas. O programa representa os menos favorecidos e a graça é rir do opressor. Esse é o grande barato e o grande poder revolucionário que o programa tem e que o humor faz. 

NJ: Como foi recebido pelos veteranos Otávio Muller, Fernando Caruso, Maria Clara Gueiros e Renata Castro Barbosa?

Macarrão: Fui totalmente agregado, totalmente acolhido. Eu fiz três testes antes de entrar e um deles foi com a Renata, o Léo Castro e o Fernando Caruso. E eles foram muito generosos. Todos me receberam com muito amor. Fui recebido com felicidade não apenas pelo elenco, mas também por toda a equipe. 

NJ: Quem são as suas principais referências na arte?

Macarrão: Carla Lopes, a diretora de teatro e que me ajudou a crescer e empoderou tantas pretas e pretos de Salvador. Ela é minha musa inspiradora, que inclusive me inspirou a fazer Pedagogia. Além dela, tenho como referência Waldinéia Soriano que é uma excelente atriz. Arlete do Bando de Teatro Olodum e dona Rejane Maia. Dos homens, tenho como referência Carlos Betão, querido que eu amo, que me ensinou tanto e também é um ser combatente.  Marinho Gonçalves e Ângelo Flavio, que me faz acreditar que o artista é esse ser político. 

NJ: Você declarou que “É a disciplina que lapida o talento”. Considera-se muito disciplinado?

Macarrão: O artista disciplinado é responsável com suas ferramentas de trabalho: seu corpo, sua voz, sua emoção. Mas eu não me considero tão disciplinado (risos) talvez porque ainda não me considere muito bom. Acho que a disciplina total talvez coloque o ser em um lugar já muito completo. Eu não sou indisciplinado, mas ainda tenho muito o que aprender, sobretudo no controle da emoção. Mas estou caminhando e aprendendo a me cuidar. 

NJ: Como você enxerga e avalia esse aumento dos mais diversos tipos de intolerância, seja religiosa, de gênero, étnico-racial ou racial no país? 

Macarrão: Eu relaciono ao poder, a política. Existe um discurso de ódio contra esse povo preto que vinha se afirmando. Existe um governo que faz com que esse povo retroceda e isso faz com que aumente a intolerância desqualificando a população. 

NJ: Como artista e também educador, como você avalia a Lei que determina como obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana nas escolas e que mesmo após 16 anos ainda enfrenta obstáculos em sua implementação?

Macarrão: A Lei 10.639 sempre enfrentou obstáculos desde o começo porque estabelece políticas públicas de favorecimento a população preta. E é importante deixar claro que tudo que vem a favorecer o povo preto vai sofrer obstáculos porque o nosso país é racista. Essa Lei é de total importância para a conscientização política sobre a cultura de matriz africana e pela origem do povo brasileiro. A maior população brasileira é a preta e a classe dominante é a branca. Quando a gente domina essa história, a gente ultrapassa esse obstáculo que nos exclui. E a Lei dá essa possibilidade de capacitação para esse menino e menina preta conhecer sua própria história. A Lei é um grande alicerce do povo preto em busca de direitos e reparação social. A  Lei faz com que o educando se conecte com a sua raiz, com a sua história, sua origem e também demarca o lugar desigual em que estamos.

NJ: Viola Davis reclamou publicamente ao receber o 1º Emmy entregue a uma mulher negra, afirmando que “não há como vencer um Emmy para um papel que não existe” fazendo menção que atores negros não ganham papéis de grande relevância nos Estados Unidos. Como você avalia o reconhecimento multirracial na dramaturgia brasileira?

Macarrão: Eu ainda preciso me ver protagonista nas novelas, no cinema e no teatro. Ainda falta muito. Quando a gente pensa em um preto protagonista a gente fala o nome de poucos e quando fala de brancos, tem uma lista enorme. Tem  alguma coisa estranha nisso pois a maior população brasileira é negra e a gente tem um número alto de atores negros. Onde estão esses atores e essas atrizes? Por quê ainda fazem papeis tão caricatos, tão subalternos? E é muito difícil um ator ou atriz negro que não seja bom, principalmente quando ele é consciente da sua cor porque ele se esforça, ele pesquisa, ele corre atrás. Atores negros não ganham papéis de grande destaque no Brasil e essa reparação já passou da hora. 

NJ: Uma frase

Macarrão: Vou citar uma de mãe Stella de Oxossi “ Do odum, ninguém foge. O que é de ser seu vai ser, será”. Odum é caminho.  Mas tem uma outra frase também que gosto muito que é de Paulo Freire que é “Mudar é difícil, mas é possível. É possível mudar, é possível transformar”.

NJ: Um sonho

Macarrão: É ter a minha casa própria, é viver bem, é dar condicionamento aos meus e vê-los bem.

NJ: Um lugar

Macarrão: Ahhh Salvador (risos). É minha raiz, amo estar em Santo Antonio Além do Carmo. Mas o meu relacionamento com o Rio também é muito bom e eu gosto muito do Arpoador. 

NJ: Um livro

Macarrão: Tem dois : “Pedadogia da Indignação” que me ajudou muito a ser um militante raivoso  sem raiva e ódio destrutivo. Paulo Freire diz nesse livro que é importante quando a gente sai do lugar de oprimido para  revelar o seu ódio principalmente pra não vir a se tornar um opressor . O outro livro é  “Um Defeito de Cor”. 

NJ: Uma série

Macarrão: “Corra”, da Netflix e “Tenda dos Milagres”, da Rede Globo.

NJ: Uma música que o faz sorrir

Macarrão:  “Pé Quente, Cabeça Fria”  (Doces Bárbaros), “O Bom Batuque” (ILê Ayê) e “A Bola da Vez”  (ILê Ayê).

NJ: O que o deixa verdadeiramente emocionado?

Macarrão: A minha espiritualidade, a minha mediunidade, a minha fé, minha crença espiritual que invoca o amor.  Quando canto pra Iemanjá, canto  para o meu espírito e  fico muito emocionado porque aflora o amor que está dentro de mim. 

NJ: O que você diria a si mesmo se pudesse voltar ao comecinho da sua carreira?

Macarrão: “Menino, preste atenção na sua saúde, preste atenção nas amizades e não se entregue tanto. Ouça mais e fale menos”. Mas eu não me arrependo das minhas entregas, elas foram necessárias porque estavam no meu caminho. 

NJ: Qual mensagem pretende passar para o público através da sua arte?

Macarrão: Olha, para o público em geral eu falo que estou chegando, com muita dificuldade ultrapasso barreiras e os obstáculos da exclusão e estou chegando porque acredito que mudar é difícil mas é possível. É possível transformar, é possível sonhar e chegar e por isso estou chegando. Pra o meu público preto eu diria a mesma coisa e reforçaria o sonho. É muito difícil, mas é possível sonhar e para isso tem que estudar. Corra atrás do livro mesmo que a escola te faça sofrer, pois é isso que te dará a oportunidade de transformar a sua história. 

NJ: Evaldo Macarrão por Evaldo Macarrão

Macarrão: Intenso. 8 ou 80. Intenso no amar. Amo amar e amo ser amado. Sou do amor. Amor. 

NJ: Macarrão, muito obrigada por participar da Nossa Janela. É uma alegria tê-lo aqui. 

Macarrão: Eu que agradeço a oportunidade. Para mim é muito importante falar da minha história, do lugar que eu venho, importante citar meus pais. Minha mãe, Ana Maria da Silva Maurício, mulher que me proporcionou a vida junto com Edvaldo de Jesus Silva. A gente vem de um lugar onde não disseram a eles que era possível chegar e eu estou chegando, mudando a minha realidade,  que ainda é a realidade de muitos pretos e muitas pretas que também não sabem que é possível mudar, mas  que quando me olham sentem uma esperança. É muito bom a gente olhar pra os nossos e acreditar na transformação, se sentir representado,  incluído. Hoje represento também uma galera que se sente excluída dessa sociedade racista e desumana. E isso é muito bacana. A mensagem que deixo é da importância da educação e da fé para a transformação. Sem elas eu não estaria aqui tentando protagonizar minha história. Obrigada pela oportunidade e pelo convite. Axé! Obrigado Lu e ao  Site Nossa Janela. Axé! até a próxima. 

 

Lu Leal

Formada em Comunicação Social, atuou na produção do Programa “A Bahia Que a Gente Gosta”, da Record Bahia, foi apresentadora da TV Salvador e hoje mergulha de cabeça no universo da cultura nordestina como produtora de Del Feliz, artista que leva as riquezas e diversidade do Nordeste para o mundo e de Jairo Barboza, voz influente na preservação e evolução da rica herança musical do Brasil. Baiana, intensa, inquieta e sensível, Lu adora aqueles finais clichês que nos fazem sorrir. Valoriza mais o “ser” do que o “ter”. Deixa qualquer programa para ver o pôr do sol ou apreciar a lua. Não consegue viver sem cachorro e chocolate. Ama música e define a sua vida como uma constante trilha sonora. Ávida por novos desafios, está sempre pronta para mudar. Essa é Lu Leal, uma escorpiana que adora viagens, livros e teatro. Paixões essas, que rendem excelentes pautas. Siga @lulealnews

4 Comments

  1. Avatar
    Dalia Leal
    1 de abril de 2020 at 14:32 Reply

    Excelente!👏👏👏☀️🌜⭐❤👐

  2. Avatar
    Regina Bia
    1 de abril de 2020 at 16:02 Reply

    A educação e a fé transformam qualquer realidade. Maravilhosa entrevista!

  3. Avatar
    Marcela Teles
    1 de abril de 2020 at 16:05 Reply

    Amei essa entrevista. menino talentoso, inteligente e do bem!

  4. Avatar
    Soneide Maria Barbosa
    2 de abril de 2020 at 19:53 Reply

    Parabéns Luciana, a Bahia é a terra de talentosos, não poderia faltar o Macarrão , sucesso pra vcs. Um abraço

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